Título: Além do Fato: A Vale na berlinda
Autor: Eliezer Batista e Raphael de Almeida Magalhães
Fonte: Jornal do Brasil, 08/08/2005, Economia & Negócios, p. A18

A conspiração para desmanche da Vale do Rio Doce não tem seu único foco na tentativa de sua desconstituição estrutural. Sua presença na Malha Ferroviária do Sudeste ¿ MRS ¿ é também questionada junto aos órgãos federais reguladores da concorrência e do sistema ferroviário nacional. A MRS foi constituída por três companhias siderúrgicas ¿ a CSN, a Gerdau e a Usiminas ¿ e por duas mineradoras ¿ a MBR e a Ferteco. E arrematou, em licitação pública, o direito de explorar os serviços ferroviários por sobre os trilhos da antiga Estrada de Ferro Central do Brasil, servindo à economia paulista, mineira e fluminense e ligando os seus centros produtivos aos portos de Santos, Sepetiba e Rio de Janeiro.

As controladoras da MRS eram, como são, desde o ato de outorga do direito de exploração, os principais usuários dos seus serviços. Para evitar predominância de um grupo empresarial sobre o outro, os instituidores da MRS, antes da entrada da Vale na empresa, através de acordo de acionista, estabeleceram direito de veto para qualquer um dos sócios do grupo siderúrgico ou do grupo dos mineradores, em matérias referentes à política de fixação tarifária e decisões de investimento.

Visando ganhar escala no mercado internacional de minério de ferro e, assim, reforçar a sua presença como player mundial com capacidade de influir na definição do preço do produto, a Vale do Rio Doce comprou, primeiro, a Ferteco, empresa de capital estrangeiro, e em seguida a MBR, evitando a ameaça de sua desnacionalização.

Estas duas aquisições ¿ na verdade duas nacionalizações ¿ evitaram que as duas mineradoras sob controle de capital estrangeiro aviltassem o preço do minério de ferro no mercado internacional vendendo-o em condições favoráveis às siderúrgicas localizadas no exterior com efeito negativo sobre o preço de exportação do produto, uma das alavancas do êxito do Brasil no acerto de suas contas externas. Sem estas aquisições, absolutamente estratégicas, teria sido impossível à Vale mover para cima o preço do minério de ferro no mercado internacional, movimento para o qual contou também com o vertiginoso crescimento da demanda provocada pela extraordinária expansão da economia chinesa.

Foi, assim, para ganhar escala e maior poder de mercado, que a Vale nacionalizou a Ferteco e a MBR. A condição de sócio da MRS foi um efeito derivado da aquisição das mineradoras, suas concorrentes no mercado global de minério de ferro. Mesmo porque, quando a Vale se tornou sócia da MRS, o acordo de acionista já estava selado e regula, até agora, a relação entre os seus sócios, não podendo, em conseqüência, ser imputada à companhia qualquer responsabilidade por práticas comerciais que a pudessem favorecer diante dos demais sócios ou que caracterizassem abuso de poder econômico perante terceiros.

A Vale, como sócia da MRS, não tem poder nem para fixar sua tarifa e muito menos para interferir na sua mecânica operacional. Como os demais sócios, utiliza os serviços da empresa, pagando o preço fixado pela concessionária, cuja gestão está confiada a um qualificado grupo de administradores profissionais.

A política tarifária e de investimento e uma gestão profissionalizada converteram a MRS numa próspera empresa ferroviária, logrando lucros ascendentes, graças ao aumento da carga operada, sempre em expansão, e às melhorias que foram sendo introduzidas na sua capacidade de processar cargas, abrangendo minério de ferro, produtos siderúrgicos e contêineres.

O desempenho empresarial da MRS, a partir de 2003, é a melhor prova de que a presença da Vale no controle compartilhado da companhia só teve influência benéfica na formação deste resultado, numa demonstração evidente de que a MRS não lhe dispensa tratamento privilegiado, cobrando pelos serviços que presta, a tarifa fixada pelos demais sócios antes das aquisições da Ferteco e da MBR. Mesmo porque não poderia ser diferente, uma vez que a MRS é uma empresa de capital aberto, submetida à censura da CVM, além da supervisão sobre suas atividades exercida pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT).

O desafio da MRS não passa por mudanças na sua estrutura acionária. O seu verdadeiro desafio é o de investir para ampliar sua capacidade de atender uma demanda em crescimento acelerado, tanto dos seus sócios como de terceiros.

Pois, com o crescimento da carga transportada ¿ minério, produtos siderúrgicos e contêineres ¿, a capacidade da MRS está quase totalmente esgotada. Por isso a empresa precisa fazer novos e vultosos investimentos no aperfeiçoamento do seu sistema gerencial e de sinalização, na compra de novas locomotivas e vagões, sobretudo de contêineres, e na ampliação e complemento de suas linhas, como de resto, é do seu dever de concessionária de um serviço público essencial num país ainda dominado pelo transporte rodoviário na sua matriz de transporte.

Entre os investimentos para expansão de suas linhas, essenciais para ampliar sua capacidade de atender a demanda, menciona-se, por sua relevância, a duplicação do trecho Barra Mansa-Sepetiba (em início de construção), a conclusão da cremalheira para chegada de minério de ferro ao pátio da Cosipa, em Santos, e, sobretudo, a construção de ferroanel ¿ norte de São Paulo, obras vitais para mudar o modal de transporte brasileiro, predominantemente rodoviário. São investimentos consideráveis os que a MRS tem que realizar. E a Vale do Rio Doce, a empresa privada que mais investe no Brasil, não pode nem deve, em benefício desta necessária expansão dos serviços ferroviários brasileiros, ser descartada da sua posição de sócia da MRS, uma empresa chave para a desejada expansão do modal ferroviário brasileiro.

São reflexões que nos ocorrem num momento em que, afinal, o país parece acordar para a questão crucial do custo e ineficiência em sistema de logística na formação do custo Brasil. Excluir a Vale do Rio Doce da MRS é dela expulsar o parceiro privado mais capacitado e habilitado a ajudar o governo a vencer a batalha da infra-estrutura ferroviária, rompendo um poderoso nó górdio que afeta a competitividade dos produtos brasileiros no mercado globalizado.

*Eliezer Batista é ex-presidente da Vale do Rio Doce e Raphael de Almeida Magalhães ´é ex-ministro da Previdência e advogado