Título: Crise: mancha de óleo em mar aberto
Autor: Gilberto Maringoni*
Fonte: Jornal do Brasil, 08/08/2005, Outras Opiniões, p. A12

Há uma mudança notável nas características da crise política. Ela deixou de ser um escândalo de corrupção restrito a partidos governistas para se espalhar como mancha de óleo em mar aberto. Uma crise sistêmica. Talvez a mais grave desde o final da ditadura, há 20 anos.

O que era inicialmente uma denúncia contra um funcionário dos Correios, logo alcançou importantes dirigentes do PT, membros do governo federal e destacados parlamentares do PP, PTB e do PL. Vários se enredaram em contas, saques, malas e cuecas oriundas de uma agência de publicidade e de dois bancos de médio porte.

Montada a CPI, apareceram como coadjuvantes secretárias, ex-mulheres, assessores e burocratas vários. Revelaram-se saques feitos por membros do PFL e do PSDB, seguidos por depósitos destinados à Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong). E vieram à luz os nomes de vários depositantes: Grupo Opportunity, Visanet, Fiat Automóveis, Construtora Norberto Odebrecht, Banco Santander, TV Globo, Empresa Folha da Manhã, Editora Abril, entre outros. Há marcas de disputas graúdas entre empresas de telefonia e fundos de pensão, que viriam de pendengas do governo FHC. Dessas evidências é preciso separar joio de jóia, para que inocentes não se misturem com culpados. Mas a chave para o entendimento do tentacular esquema veio da boca do presidente Lula, em Paris: ''O que o PT fez, do ponto de vista eleitoral, o que é feito no Brasil sistematicamente''.

Em português claro, é assim que as coisas são no que toca ao financiamento de campanhas e às votações do Congresso. É caixa 2 e ''mensalão''. No fundo, a crise apenas expõe o custo embutido no funcionamento da democracia à brasileira. A institucionalidade tem seu preço. Eleger governantes e parlamentares ou aprovar matérias no Legislativo custa caro.

A novidade dessa crise é a exibição de várias vísceras do sistema. Isso não acontecia na época do impeachment de Collor, quando corruptos foram execrados mas corruptores tiveram seus bons nomes resguardados. Agora temos as indicações dos recebedores e dos doadores.

Acabar com caixa 2 e com o ''mensalão'' significa atacar as bases de funcionamento da democracia brasileira realmente existente. Um escândalo desse tipo é uma crise institucional. A legitimidade das instituições e de votações baseadas no toma-lá-dá-cá são colocadas em xeque. É uma crise de regime. Ainda não é uma crise de dominação. Ou seja, ninguém discute quais as classes que mandam e quais obedecem na sociedade. O pilar que sustenta essa hierarquia social é a manutenção da política econômica do governo FHC.

Ao contrário da percepção popular, a economia não está em crise. Do ponto de vista de quem tem dinheiro, ela vai muito bem. Os lucros são estratosféricos, o fluxo de capitais para o Brasil é expressivo, os indicadores macroeconômicos são positivos e o país cresce. Cresce a índices medíocres, concentrando renda e desempregando, mas isso pouco importa para o grande capital.

A crise institucional só se tornará uma crise de dominação se a economia for atingida pelas denúncias. Lula já tomou medidas práticas para garantir que nada muda no setor.

Mas essa invulnerabilidade da política econômica, paradoxalmente, também alimenta o descrédito das instituições. Se a vontade do eleitor por mudança, manifestada em 2002, é inútil para alterar o que interessa, para que serve o voto? Aí se percebe que ''mensalão'', caixa 2 e mudanças de mentirinha fazem parte de uma democracia de fachada.

Que cenários se abrem a partir dessas constatações? Uma saída pela esquerda implicaria uma coesão e uma força política que os setores minoritários do PT, outros partidos de esquerda e os movimentos populares não têm no momento. Essa alternativa passa pelo entendimento da crise institucional como subproduto da política econômica. Em outras palavras, sua superação passaria pela mudança da orientação neoliberal.

Pela direita, é bem possível que prospere uma tentativa de grande acordo para salvar as aparências. Esse acordo possui mil e uma nuances. Entrega-se a cabeça de alguns notáveis e o governo Lula segue sangrando até 2006, quando será batido nas urnas. A possibilidade de um segundo mandato tornou-se remota. Num acordo desse tipo, as metas são evitar o impeachment e a mudança da política econômica.

Para essa gente, perder mandatos e credibilidades são prejuízos suportáveis até certo ponto. O que não dá mesmo é para perder dinheiro.

*Gilberto Maringoni é autor de ''A Venezuela que se inventa: poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez (Editora Fundação Perseu Abramo)