Título: O centenário de Nise da Silveira
Autor: Bernardo Horta
Fonte: Jornal do Brasil, 09/08/2005, Outras Opiniões, p. A11

Cem anos atrás, nasceu uma brasileira notável. Nise da Silveira, alagoana, desde nova demonstrou-se singular. Ainda criança já escrevia em francês, aos dez anos lia obras de Spinoza e, aos 15, entrou para a Faculdade de Medicina da Bahia. Após formar-se, desembarcou sozinha no Rio de Janeiro, cidade que escolheu para viver. Então, tinha início uma trajetória lendária.

Na década de 1920, a jovem nordestina - que em seus primeiros anos na antiga capital morou em Santa Teresa, onde conheceu o poeta Manuel Bandeira - estabeleceu contato com intelectuais e artistas. Passou por dificuldades materiais. Foi quando a moça de formação católica teve contato com o marxismo - um paradoxo que a acompanharia para sempre. Na época, o país fervilhava com o modernismo, o tenentismo e o período entre-guerras.

Na caça às bruxas que sucedeu à Intentona Comunista de 1935, ela foi presa pela ditadura de Getúlio Vargas. Na Casa de Detenção da Frei Caneca conheceu o escritor Graciliano Ramos, que, anos mais tarde, dedicaria um livro seu à amiga conterrânea. Foi companheira de cela de Olga Benário. Doutora Nise participou da memorável madrugada em que a mulher de Luís Carlos Prestes foi arrancada grávida da prisão para ser embarcada para a Alemanha, onde morreria numa câmara de gás. Houve rebelião e confronto com a polícia de Filinto Miller.

Após oito anos de ostracismo, em 1944 foi absolvida e reintegrada ao serviço público, defrontando-se com novos métodos de tratamento, como o eletrochoque e a lobotomia. Recusou-se a aplicá-los e, por isso, foi rebaixada à seção de terapêutica ocupacional. Curiosamente, esta aparente queda profissional resultou em uma carreira de projeção internacional, marcada pela antipsiquiatria.

Acompanhando os internos nos ateliês de pintura e modelagem, a psiquiatra descobriu a importância da produção de imagens no tratamento da esquizofrenia. Em 1952, fundou sua principal obra: o Museu de Imagens do Inconsciente. Então, influenciou a estética e a crítica de arte do país. Mário Pedrosa apoiou e divulgou seu trabalho. Assim, indivíduos que, antes, penavam nos depósitos psiquiátricos ressuscitaram socialmente e foram alçados à categoria de artistas, alguns premiados em diversos países.

Anos mais tarde, esteve em Zurique com o analista suíço Carl Gustav Jung - discípulo predileto e rompido de Sigmund Freud, que chegou a denominá-lo príncipe da psicanálise. A colaboração entre ambos aprofundou-se, o que a incluiu na linha de sucessão da chamada psicologia moderna. Em 1961, o então presidente Jânio Quadros, por decreto, determinou a implementação do método criado pela doutora em todo o sistema de saúde mental. Uma semana depois, renunciou, e o governo seguinte não acatou o decreto. Nise não desanimou - pelo contrário, fortaleceu-se na luta. Nos últimos 50 anos, seu trabalho vem impressionando milhares de pessoas, entre a perplexidade e a emoção causadas pelas obras criadas no Museu.

Ela era uma funcionária pública orgulhosa em servir. Intelectual dedicada à denúncia. Mulher pioneira que viu e viveu a história do século 20, e mais: entrou para esta história. Ainda em vida, tornou-se personagem em livros, novelas e filmes. Tinha personalidade controversa - dócil e feroz. Por isso, o amigo Hélio Pellegrino a denominou Anjo Duro.

Dez anos de cegueira progressiva e os últimos 13 anos de vida em uma cadeira de rodas não lhe tiraram atitude e coragem. Combativa e muito além de seu tempo, conferiu um admirável legado de ação e coerência. Frei Betto a considera a mulher do século 20 no Brasil.

Em 2005, comemora-se o centenário de nascimento de Nise da Silveira. Eventos já aconteceram e outros estão por vir: um longa-metragem biográfico A senhora das imagens; o espetáculo teatral Caralâmpia, no Rio de Janeiro; e sua fotobiografia, lançada pelo Museu, são alguns deles. Além disso, no mês de setembro, em Paris, haverá uma exposição sobre vida e obra da doutora.

Passados seis anos de sua morte, a memória de Nise afirma-se como referência valiosa, marcada por transparência e inquebrantável fé no futuro. Ela viveu e procedeu com firme coerência durante 94 anos de vida. Neste sentido, seu legado é patrimônio significativo para a construção da identidade brasileira.

O centenário de Nise da Silveira, em meio ao colapso de valores políticos e culturais, resgata o aspecto mais vigoroso de quem viveu de acordo com o que pensava e preconizava. Cem anos para serem comemorados com arte, ciência, alegria e, sobretudo, beleza - tal qual Nise: memória legítima que dá lugar ao futuro.