Título: Golpe contra a Constituição
Autor: Dalmo Dallari
Fonte: Jornal do Brasil, 13/08/2005, Outras Opiniões, p. A11

A Constituição não tem a mínima culpa pela corrupção dos costumes políticos que vem sendo revelada por meio de Comissões Parlamentares de Inquérito. Na realidade, se a Constituição fosse respeitada, se os brasileiros tivessem o bom hábito de cumprir os preceitos constitucionais e de exigir que eles fossem cumpridos por todos, a possibilidade de corrupção pública e privada, utilizando meios públicos, seria menor.

Busca-se uma saída para a atual crise política, mas um ponto deve ser ressaltado, para evitar equívocos bem-intencionados ou manobras de má-fé: o Brasil tem uma boa Constituição, que é a mais democrática de toda a sua história, uma Constituição que consagra valores fundamentais da pessoa humana e dá força jurídica a princípios que se forem observados serão a garantia de liberdade, igualdade e justiça social. Além disso, a Constituição inclui a moralidade entre os princípios que devem nortear as ações públicas, como consta do Artigo 37. Ainda mais, a Constituição define os instrumentos formais para a prática da democracia representativa e enumera os institutos fundamentais que deverão ser usados para a participação do povo no exercício do poder.

Se tudo isso já existe na Lei Magna, como se explica a ocorrência de tanta corrupção, de um número tão grande de pessoas que, tendo ou não um mandato popular, ocupando ou não um cargo público, roubam e enganam o povo, usam recursos públicos em seu proveito pessoal e promovem a degradação dos costumes políticos e das instituições? O problema estará nas ambições desmedidas e na falta de consciência ética das pessoas ou, diferente disso, é a Constituição que contém falhas que favorecem a ação dos corruptos?

Quanto à Constituição, o que se deve admitir é que ela é obra humana e contém imperfeições. A Constituição foi promulgada em 1988 e bem pouco tempo depois ocorreu a implosão da União Soviética, instalando-se no mundo um único pólo de poder, com a hegemonia de uma potência capitalista, os Estados Unidos. Vem daí a supremacia de objetivos econômicos e financeiros, consubstanciada na expressão neoliberalismo, que levou, no Brasil, à privatização de setores fundamentais do Estado. Essa mesma influência pode ser identificada na orientação editorial de grandes veículos de comunicação, que exaltam a supervalorização de objetivos econômicos, reduzindo tudo à perspectiva do mercado, inclusive a pessoa humana.

Ao lado desses fatos, é importante lembrar que na Assembléia Constituinte de 1987 e 1988 houve a interferência do fato de se tratar de um Congresso com poderes constituintes e não de uma Constituinte exclusiva. Isso levou à adoção de um sistema eleitoral que facilita e até estimula a prática de corrupção. Por exemplo, foram rejeitadas as propostas de financiamento público das campanhas eleitorais, baseadas na experiência alemã. Hoje está evidente que teria sido altamente benéfica para o povo brasileiro a proibição da compra de candidatos e de parlamentares por financiadores de campanha. Outro ponto rejeitado foi a adoção do sistema de distritos eleitorais, que ligaria o candidato a uma pequena região, permitindo aos eleitores o efetivo conhecimento de cada candidato. Essas medidas poderão ser introduzidas por meio de emendas.

A par disso, com a alteração de mais alguns artigos no capítulo referente ao Poder Legislativo, poderão ser estabelecidas regras para responsabilidade dos mandatários, prevendo-se a revogação dos mandatos pelos eleitores, o que será muito fácil no sistema distrital. Não existe qualquer justificativa séria para propor uma nova Constituinte, bastando algumas emendas à atual Constituição. A idéia de nova Constituinte, ou de uma nova revisão com processo simplificado, que seria inconstitucional, reflete o desejo de pessoas e grupos que sempre detestaram a atual Constituição justamente por sua orientação humanista. O que pretendem é extirpar do texto constitucional tudo aquilo que não convém aos interesses econômicos e financeiros, inclusive a garantia de direitos fundamentais para todos e o princípio ético e jurídico da dignidade humana.