Título: ''A saída para a crise está na ação-cidadã''
Autor: Rodrigo de Almeida
Fonte: Jornal do Brasil, 13/08/2005, Idéias, p. 3

Como todos os cidadãos de bem, o cientista político Candido Mendes está preocupado com a crise instalada no PT, no governo, no Congresso - e, em especial, com os possíveis respingos na imagem do presidente Lula. O professor, no entanto, rejeita avaliações catastróficas. Sabe da complexidade de interpretação da realidade com os fatos em curso. Organizador dos seminários País de Lula: e agora? - Esperança e Projeto Brasileiro, Candido Mendes está terminando o livro Lula, depois de Lula, a ser publicado nos próximos dias, na seqüência das análises da série ''História Imediata'', que já tiveram neste ano a publicação no México, de Lula - la opción mas que voto, e na França, a nova edição de Lula - une gauche que s'éveille. O petista não foi o único foco da série. Na bibliografia do professor, incluem-se livros sobre os governos Collor e Fernando Henrique. Nesta entrevista, Candido sugere saídas para a crise.

A crise ganhou proporção que poucos imaginariam. PT e governo Lula estão hoje com a imagem arranhada. A crise chegará ao presidente? Já chegou? ¿ Os índices da popularidade presidencial ainda mostram a diferença entre a satisfação com o governo e o apoio a Lula. Esse paradoxo intriga os analistas acostumados aos desfechos catastróficos de crises. É o caso daqueles que enxergam na atual crise a repetição da síndrome Collor. O desagrado da classe média é crescente e ela tem o monopólio sobre a opinião pública do país. Mas Lula foi eleito por um outro país. A nação de fundo que o levou à presidência tem critérios de satisfação tão simbólicos e hoje indissoluvelmente ligados à manutenção do ¿Lula lá¿. O sentimento de frustração, típico das classes médias, não contagia o país de fundo.

A desagregação do governo, então, não é uma questão de tempo, como muitos têm defendido. ¿ Não, não é uma questão de tempo. A desmoralização do Congresso, sim. Estamos diante do impasse que se divisa, pelo tamanho da corrupção sistêmica das instituições, irmã gêmea do nosso subdesenvolvimento. Nem o PT que chegou ao poder resistirá a essa contaminação. Muito mais do que o ¿doa a quem doer¿, manifestado pelo presidente Lula e por Tarso Genro, impõe-se impedir as renúncias táticas ao mandato de implicados. E, sobretudo, como já mostrou o presidente da CPI dos Correios, Delcídio Amaral, é preciso barrar o ¿acordão¿, que além de atingir o PT, fulminaria o Congresso. Passou-se a escolha de vítimas do sacrifício, diante do arrolamento de Marcos Valério, que expôs à nação um banco desmesurado de réus, implicados no mensalão.

Como o sr. analisa as revelações estampadas nas CPIs? ¿ O deputado Roberto Jefferson disparou uma mecânica acusatória que não só o engole, mas mostra a que desmesurado pode chegar uma corrupção sistêmica. Ou melhor, vemos a modernização dessa corrupção, diante da complexidade de interesses e de seu entrelace entre a vida política e a econômica do país. O lobby de Valério, como se vê, existia há bastante tempo e prestou serviços desde o governo Collor. Por ele passou o PSDB do melhor pedigree de Eduardo Azeredo. Ao mesmo foi apresentado o secretário Delúbio Soares, num misto de amadorismo e de deslumbramento.

O que o sr. chama de ¿modernização¿? ¿ Nessa ¿modernização¿, passou-se das correções com dinheiro público das despesas de campanha à nova contratualização, dos votos alugáveis à formação de uma maioria de governo. Transitamos do velho nepotismo, ainda defendido pelo presidente da Câmara, Severino Cavalcanti, aos cheques de Brasília. Mas é a mesma clientela que persiste e a que se entregam as legendas fósseis ou neofósseis do Brasil da constante privatização da coisa pública. Ou melhor, da cosanostra frente à República. Resta saber se a tentação dessa operacionalidade saiu dos quadros médios da máquina petista, pelo qual respondeu o tesoureiro do partido. Ou se a mecânica se transformou em esquema concertado em plena responsabilidade de sua cúpula. Ou se, ainda, como diz a própria deputada Denise Frossard, foi remetida por Lula, de princípio, aos ¿detalhes da política¿, que competiriam à Casa Civil. O mais importante é o que levanta o deputado Oscar Serraglio, relator da CPI dos Correios. O vulto dos empréstimos exorbita da economia natural. No seu porte e na sua sofisticação, podem talvez sugerir, como levanta o relator, um jogo muito mais ambicioso entre o poder político e o econômico, sugerindo uma operação inovadora de controle institucional do país. A cassação de deputados não pode sufocar essa investigação mais ampla para chegar-se ao fim da meada. Quem controla quem e qual o último propósito nessa modernização sofisticadíssima de tão amplos condicionamentos na vida pública do país? Essa pergunta precisa ser respondida.

Diante desse cenário, é possível retomarmos, no curto prazo, a normalidade perdida? ¿ O que começou no maquiavelismo inocente das oposições de plantão ganhou a força das tentativas de se desestabilizar o presidente e mostra agora novos condicionamentos entre o nosso poder político e econômico. A complexidade do desfecho da crise já eliminou duas saídas clássicas. Não vamos à cassação-exorcismo, nem ao escape salvacionista das reformas eleitorais. Nem se repetirá a discussão arquibizantina das soluções do voto distrital, das punições de doadores ostensivos e das ¿contribuições não contabilizadas¿. Ou, sobretudo, do pedido de rigor na disciplina partidária. Não se lograria sem uma explícita emenda constitucional que eliminasse a verdadeira privatização que se estabelece entre o partido, e o eleito, tornando este o dono exclusivo do seu mandato. Claro, isso não pode ser realizado agora, ainda que muitos congressistas assim acreditem pelo menos numa ¿terapia de choque¿, que resultasse avançar uma pauta mínima proposta, por exemplo, pelo senador Jorge Bornhausen.

Essa proposta mínima, então, não é suficiente? ¿ Não creio. Não é a abolição dos showmícios, nem o novo controle da aparição mediática nas campanhas que dão conta da sofisticação dos abusos, que só têm um corretivo lento, e frustrante, para a solução do escândalo. A saída estaria na ação-cidadã, no controle das despesas eleitorais por ombudsmen específicos e, sobretudo, no recall sugerido no debate da proposta da Comissão Arinos, com o apoio entusiástico do Dr. Ulysses (Guimarães). Se a corrupção é da natureza do sistema, ela prospera no curso dos mandatos. E por que não expor esses mandatos a um plebiscito, como fazem as legislações de tantos Estados americanos, de cantões suíços e de circunscrições escandinavas? E agora, de maneira inovadora, pela Constituição venezuelana, que o aplicou, há meses, na confirmação do presidente (Hugo) Chávez ao poder. Não existe reformismo contra desequilíbrios de fundo, que logo encontram o escape à norma. O abuso declina, mas não acaba, sem a interrupção-cidadã. E vale aqui o velho lembrete de Santiago Dantas: ¿Em países como o nosso, o povo como povo é melhor que a elite como elite.¿

Normalizando-se o sistema, Lula sobrevive sem o PT? ¿ O PT dificilmente sai íntegro ou pelo menos reconhecível em face do tamanho da crise e, sobretudo, do risco mortal de ser avaliado exatamente por consciências de elite, que, como Lula, podem externar as suas decepções e transformá-las em visões totalizantes do reconhecimento ou do descrédito de uma força política. É neste tom que tem sido o diapasão básico da crítica, que em nome da verdadeira dialética da mudança incorreu em dois pecados fundamentalistas: o de querer a todo custo uma pureza de ação que ignora a práxis de um sistema e a complexidade de seus condicionamentos. Nem, sobretudo, pelos rigorismos programáticos. Os PSol estão aí, graças a Deus, para livrar a realidade das ditaduras dos credos. Da mesma forma, as classes médias estão presentes ainda, mais do que o proletariado, na vanguarda do partido: vão se dar ao luxo do repúdio político, com uma noção psicanalítica de desamparo, mais que de decepção. Nesta altura, o caminho da purga talvez tenha cedido demais às concessões de imagem de classe para a sobrevivência do partido. Nesses padrões, ele se torna irreconhecível. É, sim, na resposta direta ao Brasil de fundo que passa o novo da vitória de Lula. Seu risco está em regredir, pela desmediação do partido aos suportes sindicais estritos ou aos movimentos sociais. O sucesso difícil, mas fascinante, resultaria no uso do poder simbólico que é próprio do presidente Lula, detentor da opção fundadora que o levou ao Planalto. Nesse jogo, torna-se imprevisível o tempo de espera, de reforço ou de condenação do presidente.

O governo parece sem ação. Poderá retomar a capacidade de iniciativa política? ¿ O presidente Lula já fez instintivamente o que lhe competia, buscando demonstrações ao plebiscito direto do seu eleitorado e evidenciando a sua descontaminação do Brasil oficial. Doutra parte, reiterou o respaldo do sistema econômico e financeiro, em todas as suas ramificações. O fantasma das CPIs passou do anticlímax à perplexidade. A visão, por exemplo, do presidente da CPI dos Correios, Delcídio Amaral, de buscar desfechos imediatos, ¿doa a quem doer¿, e indiciando responsáveis, não parece ser acompanhada pela Presidência da Câmara, atenta ao tamanho da culpabilidade deste Congresso, se investigada até o fim a corrupção sistêmica do Legislativo. Quanto aos ¿desmandos de campanha¿, a solução seria a imediata e drástica, até por meio de medida provisória, como querem alguns, de antecipação da reforma eleitoral, com vistas ao saneamento antecipado do novo pleito, criando financiamento público, prometendo punições para as reincidências e explicitando as doações privadas. Mas, sobretudo, anistiando os desmandos ora comprovados, e não mais se fale nisso. É o que comprometeria uma efetiva ¿virada de página¿ de um sistema, quando a pressão da opinião pública torna irrevogável a mudança das práticas e costumes que penetraram tão profundamente a elite brasileira.

O Congresso saberá cortar a própria carne? ¿ O Congresso dos Severinos não escapa à escolha de Sofia: depredar os seus quadros ou dar-lhes a indulgência plenária de uma vergonha nacional, confiando na desmemória do país ou no cansaço da opinião pública com uma investigação tão repetida quanto inconclusiva. Não podemos esquecer que a crise está diante dessa expectativa inédita de um inconsciente social brasileiro. Lula é a estrita garantia de que responda a uma verdadeira esperança. Seu fracasso miniaturiza o país, se não for ao racha do nosso projeto de nação.