Título: Ex-ministro faz o elogio da mentira
Autor: AUGUSTO NUNES
Fonte: Jornal do Brasil, 16/08/2005, País, p. A2

É improvável que o presidente Lula da Silva tenha lido a coluna do economista João Sayad na Folha de S. Paulo desta segunda-feira: ele acha leitura pior que exercício em esteira. Assim, recomenda-se a algum assessor caridoso transmitir-lhe a essência do artigo, que afunda o acelerador já no título: "Mentiras". Lula decerto encontraria algum ministério para Sayad e o incluiria no "gabinete da crise". Lidar com mentiras é com ele mesmo, sugere o autor. A primeira parte do texto discorre sobre o que já sabem até bebês de colo: certas mentiras são indispensável à vida em sociedade. O médico mente por compaixão, exemplifica. Contratos de seguros formalizam cláusulas mentirosas em letras miúdas. O adúltero nega terminantemente o adultério. Não se trata assunto de gente grande na presença de crianças.

Apoiado em tais obviedades - tão rasas que uma formiga poderia atravessá-las com água pelas canelas, diria Nelson Rodrigues -, Sayad sustenta que, no Brasil, mentir é tão natural quanto respirar. A segunda metade do artigo viaja rumo a teses ainda mais audaciosas. Ele garante que a mentira, inerente aos políticos, costuma reduzi-los a mentirosos compulsivos em situações difíceis. Se a crise fica preta, como preto parece este inverno das CPIs, a mentira se torna epidêmica.

A conspiração dos cínicos descrita por Sayad abrange culpados e inocentes, inquisidores e acusados, réus confessos e depoentes acidentais. Todos se juntam no grande balaio dos assassinos da verdade, engrossado por indignados de araque e falsos perplexos. "Evasão de divisas não é crime no Brasil há pelo menos dez anos", zomba o pensador. "A sonegação fiscal não deveria surpreender nem empresários, nem auditores, nem publicitários, nem jornalistas, nem parlamentares".

Quem não sabia das bandalheiras institucionalizadas? "Operários, funcionários públicos, costureiras, marceneiros, barbeiros, taxistas, a maioria dos brasileiros", responde Sayad, clemente com categorias profissionais que julga fiéis a Lula. "A indignação da elite é mentirosa. O escândalo é artificial", decreta. "A indignação dos brasileiros simples é perigosa. Instituições políticas e democracia dependem de mentiras".

Ministro do Planejamento do presidente José Sarney, secretário de Finanças da prefeita Martha Suplicy, vice-presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) em fim de mandato, Sayad também é sócio-fundador do clube dos que tudo sabem e tudo vêem. A realidade insiste em desmenti-lo? Pior para os demais viventes, desdenham os integrantes do grupo. Não saberão o que perderam.

Nos anos 80, quando o Plano Cruzado começou a fazer água, o então ministro defendeu a tese de que o crescimento da inflação não prejudicaria o crescimento econômico. Não foi ouvido. Secretário de Marta Suplicy, desenhou o mapa que conduziria ao saneamento financeiro da maior metrópole brasileira. Foi ouvido por Marta, que percorreu a trilha das despesas insensatas e extravagâncias eleitoreiras.

A gastança como rotina levou a sucessivos atropelamentos da Lei de Responsabilidade Fiscal e, há semanas, colocou a ex-prefeita na mira do Ministério Público. Sayad, que deixou o barco no meio da viagem, soube pelos jornais. Estava concentrado no esforço para eleger-se presidente do BID.

Derrotado, agora lhe sobra tempo para a contemplação do Brasil imerso na lama. Como informam o tom e o conteúdo do artigo, o fracasso recente não abalou a autoconfiança e a imaginação do ex-ministro. Poucos ousariam afirmar, a um Brasil tão machucado pela decepção imensa, que a verdade é incompatível com o regime democrático.

Sempre cabe mais um na Esplanada dos Ministérios, presidente. Convoque João Sayad. Ele merece.