Título: Sangramento brasileiro
Autor: Roberto José de Mello Oliveira Alves Filho
Fonte: Jornal do Brasil, 16/08/2005, Outras Opiniões, p. A11

Temos nos indignado com notícias de corrupção em vários Estados, em diversas instituições, que envolvem simples cidadãos, servidores públicos, tanto de alto quanto de baixo escalão, e políticos, de todos os poderes da república, indistintamente. Destacamos aqui alguns aspectos que têm sido relegados pelos analistas.

Embora o Brasil seja propagado como uma das maiores democracias do mundo, a verdade é que nossa democracia é recente e ainda deliberadamente inacabada. Nossas instituições e nosso arcabouço jurídico vêm sendo construídos ao longo desses 500 anos por uma oligarquia que sempre se manteve no poder às custas de nepotismo e corrupção. Por isso, em relação aos crimes chamados ''do colarinho branco'', tais como os praticados em sua quase totalidade por pessoas oriundas das elites, nossa legislação, tanto civil como penal, coloca restrições à apuração, dificulta a tipificação e o enquadramento e ainda acaba por penalizar de forma branda o criminoso. Por isso, o pouco - ou quase nenhum - risco de o corrupto - e menos ainda de o corruptor - cumprir pena pelo crime de corrupção ou até de sofrer outras conseqüências menos graves.

Ainda fruto do processo histórico de formação de nossa sociedade, não se desenvolveu em nossa população o espírito de nação e de cidadania. O Brasil foi o último país no mundo a acabar formalmente com a escravidão, e, embora houvesse movimentos sociais significativos, na época que defendessem o fim da escravidão, esta acabou mais por pressão externa, por interesses econômicos, do que pela conscientização de nossa sociedade.

A falta desse conceito de cidadania se verifica em diversas outras manifestações que, apesar de serem eticamente reprováveis, são corriqueiras e não mais identificadas, sem uma reflexão maior, como contrárias à ética. Nos reportamos aos famosos ''jeitinhos'', muitas vezes utilizados ''sem maldade'', mas que são calcados em equivocados de cidadania. Aparentemente inofensivos, o dar dinheiro ao garçom numa festa para ser mais bem atendido; o dar um ''café para o guarda'' para não ser multado; o dar ''um agrado'' ao funcionário do cartório para o seu processo andar, são atos de corrupção e suas práticas, banalizadas.

Finalmente, mas ainda com origens históricas semelhantes, temos a sonegação de tributos. Sem que as pessoas tenham consciência, ainda pela falta de exercício do conceito de cidadania, a sonegação de tributos - crime tipificado na legislação - é uma ação comum. A sonegação de tributos lesa a pátria, prejudica a população como um todo, mas mesmo assim é indiscriminadamente praticada. Vamos salientar um aspecto essencial nesse momento em que estamos nos deparando com a existência de redes de corrupção que corroem nossas instituições. Todo o dinheiro que alimenta essa imensa rede de corrupção tem origem no chamado ''caixa 2'' de empresas, o que nada mais é do que receita obtida pelas empresas cuja entrada se dá por intermédio de fraudes para que estes valores não sejam submetidos à tributação.

Podemos dizer, com a certeza de estarmos perto da verdade, que o efetivo e determinado combate à sonegação por parte da sociedade brasileira - utilizando-se dos instrumentos de que dispõe -, e sua conseqüente diminuição, terá como efeito direto a redução da corrupção. Não há como imaginar que qualquer empresa retire do ''caixa 1'' dinheiro para propina.

A sociedade brasileira está sangrando, principalmente ao constatar que sobra dinheiro para a corrupção e falta tanto para saldar a imensurável dívida social ou para diminuir a imensa desigualdade. Já passou da hora de a sociedade afastar definitivamente da vida pública e do convívio social, tanto o político hipócrita, quanto o falso cidadão com aparente, e indecente, incompatibilidade entre renda e patrimônio.

O corrupto ou corruptor, são frutos da sociedade brasileira, com seus valores morais e sua ética construída durante o processo histórico de desenvolvimento da sociedade e exercitados no dia-a-dia por nós. Há que se refletir, portanto, sobre nossas ações e sobre o que passamos aos nossos filhos.