Título: Morte de um mito da esquerda
Autor: Luiz Inácio Lula da Silva
Fonte: Jornal do Brasil, 14/08/2005, País, p. A7

Em meio a uma das mais intensas crises na democracia brasileira, o país perde um dos principais políticos brasileiros da história recente, reconhecido por sua diplomacia conciliadora. O presidente nacional do PSB, deputado federal Miguel Arraes, morreu ontem, às 11h40, aos 88 anos, no Hospital Esperança, em Recife, onde estava internado há 58 dias. A causa da morte foi um choque séptico causado por infecção respiratória, agravada por insuficiência renal.

O corpo foi velado na tarde de ontem no Palácio do Campo das Princesas, sede do governo de Pernambuco. O enterro está marcado para hoje, às 16 horas, no Cemitério Santo Amaro. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva já confirmou presença e decretou luto oficial por três dias. O Planalto divulgou nota em que Lula manifesta seu pesar pessoal:

''A morte de Miguel Arraes é uma enorme perda para o povo brasileiro. (...) pela ausência de um companheiro que com experiência, sabedoria e capacidade de resistência fará muita falta no trabalho em favor da justiça social em nosso país''.

O vice-presidente do PSB, Roberto Amaral, lamentou a perda, definindo-a como ''terrível e muito grave'', principalmente neste período de crise em que a presença de Arraes era imprescindível.

Nascido em Araripe, no Ceará, formado em Direito, fez vida pública em Pernambuco. O primeiro cargo de expressão, ainda nos anos 40, foi o de secretário estadual de Fazenda do governador Barbosa Lima Sobrinho. A carreira política começoufoi no antigo Partido Social Democrático, em 1950, quando se candidatou a deputado estadual e ficou como suplente, assumindo depois o mandato. Conseguiu se reeleger em 54 e 58. Em 59, ganhou a eleição para prefeito de Recife.

Foi nesse momento que mostrou a face de administrador voltado sobretudo para a população desfavorecida. Uma espécie de precursor do orçamento participativo, pois discutia antes com as comunidades interessadas as medidas que queria implantar.

Apesar da personalidade retraída e de nunca ter sido um grande orador, no início dos anos 60, Arraes já alcançara prestígio na corrente ''progressista'' da política brasileira. Em 61, pronunciou-se a favor da posse de João Goulart e contra a implantação do parlamentarismo. Em 62, elegeu-se governador de Pernambuco pelo obscuro Partido Social Trabalhista (PST), embora contasse com o apoio das correntes de esquerda do Estado, incluindo os comunistas. Fez um governo centrado em medidas sociais, convergindo na proteção dos trabalhadores rurais.

Sua fama de líder popular fez sombra aos dois principais chefes trabalhistas, o presidente João Goulart e Leonel Brizola. Antes de dar uma guinada à esquerda, no fim do seu governo, Goulart chegou a ser criticado por Arraes, que o considerava subserviente a grupos conservadores.

Em Pernambuco, sucessivas greves, sobretudo de trabalhadores rurais, provocavam reação militar em fins de 63. Pouco antes do movimento militar de 31 de março, a situação no Estado se deteriorou, quando empresários de vários setores ameaçaram paralisar atividades econômicas se não terminasse a greve de 300 mil trabalhadores rurais, que protestavam contra o não cumprimento das leis previdenciárias no campo. Jango cogitou intervir em Pernambuco. Arraes convenceu os grevistas a encerrar a greve.

Os militares interromperam sua carreira política. Preso no dia do golpe, recuperou a liberdade mais de um ano depois, quando se exilou na Argélia. Retornaria ao Brasil em 15 de setembro de 1979, recebido por cerca de mil pessoas no Galeão.

Em 82, elegeu-se deputado federal (PMDB-PE). Defensor das eleições diretas, foi um dos primeiros a apoiar Tancredo Neves para sucessão de Figueiredo. Na sua segunda fase, como líder político, Arraes mostrou face mais moderada, propensa a alianças com forças conservadoras. Na disputa a ao governo de Pernambuco, em 86, aliou-se a alguns desses setores no Estado e se elegeu. Mostrou um perfil administrativo, criticado pelos adversários.

Já no PSB, conseguiu se eleger de novo governador, em 1994. Obteve também mais dois mandatos de deputado federal: 1991-1994 e 2003-2006.

O presidente da Câmara, Severino Cavalcante, (PP), ressaltou a importância de Arraes na crise político brasileiro:

- Homens como ele nos fazem entender que o importante na luta é a convicção de ideais e a busca incessante pelo cumprimento daquilo em que acreditamos. Torna-se ainda mais penosa a perda de Arraes no momento político que atravessamos. Sua presença sempre foi referencial para a ética entre os homens públicos.

Renan Calheiros (PMDB-AL), também lamentou a morte de Arraes nesses tempos de ambiente político conturbado:

- Nesse momento de crise, de disputa política óbvia, de discussão sobre a legitimidade dos mandatos e da própria representação, pessoas como Miguel Arraes vão fazer muita falta. Como homem ponderado e equilibrado que era, poderia ajudar na construção de uma saída para esse momento que vivemos.