Título: Temporada no inferno
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 14/08/2005, Opinião, p. A10

O chão vem progressivamente desaparecendo sob os pés do presidente Lula. Desde que o Jornal do Brasil denunciou, em 24 de setembro de 2004, a compra sistemática da atuação de alguns parlamentares pelo Palácio do Planalto, uma fantasia vem se dissolvendo. Há dois anos e meio, 53 milhões de brasileiros optaram pelo então candidato do PT. Símbolo da mobilidade social do Brasil, com a década de 80 perdida e a de 90 ''desperdiçada'' em termos de efetivo crescimento econômico, a população sentiu em Lula um alento - a esperança vencia o medo. O Brasil seguramente tem de se orgulhar por uma democracia que permite a ascensão de um operário, filho do povo, à chefia da nação.

O depoimento voluntário de Duda Mendonça à CPI dos Correios na quinta-feira e falta de realizações do governo administrado pelo presidente de honra do PT assassinaram a esperança. O próprio Duda Mendonça, formulador de um novo Lula em 2002, ocupou-se de desconstruir o invento. O criador afastou-se da criatura. Agora, o sonho acabou. Em lugar da esperança, não é o medo que se dissipa pela República. Ora pairamos sob uma névoa de apatia e decepção; assolados pelo sentimento de que nada estará resolvido enquanto tudo não se resolver.

A agenda social de Lula erodiu-se. O programa Fome Zero não logrou êxito. O Primeiro Emprego mal saiu do papel. Um pacto para o crescimento, tarefa que supostamente cabia ao Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, apenas reproduziu, nos métodos e resultados, a infertilidade do assembleísmo petista.

A economia ainda não é afetada pelos vírus políticos graças à conjunção dos mecanismos de governança interna erigidos na última década e a uma conjuntura internacional escassamente tão favorável. É estranho que a administração de Lula aproprie-se, como ativos seus, da estabilidade econômica e do crescimento - medíocre - do PIB nos últimos 30 meses.

No período, crescemos abaixo da média mundial. Bem menos do que outros emergentes como China, Rússia, Índia e ainda da Argentina. Ainda assim, boa parte da estabilidade da economia ampara-se em pilares como a Lei de Responsabilidade Fiscal e a manutenção de superávits primários. Princípios que há poucos anos faziam torcer o nariz de todos os filiados ao PT.

Mensalão. Bingos, CPIs. Corrupção nos Correios. Inépcia. Lentidão. Mentiras. Qual será o legado do governo Lula? Com o início de sua Presidência afigurava-se para a agenda um tripé de reformas: trabalhista, previdenciária e fiscal. Nenhuma testemunhou avanços significativos. Em conseqüência, nossa capacidade de competir internacionalmente não se confirmou até agora.

Pior, temos levado adiante uma política externa terceiro-mundista, recentemente derrotada em pleitos como o assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, a presidência do Banco Inter-Americano de Desenvolvimento ou a direção-geral da Organização Mundial do Comércio. Até a defesa internacional do combate à fome, bandeira empunhada por Lula nos périplos como pop-star pelo mundo, vê-se esvaziada por um presidente que não consegue expurgar - com o seu autoconferido patrimônio ético - a corrupção que viceja em setores do governo e do partido que encabeça há 25 anos. Há pouco do sonho de Lula que se possa concretizar. Quase nada de uma agenda positiva a construir.

Os três últimos dias da semana que passou abrem uma janela no tempo. Os 16 meses que nos separam do fim do mandato de Lula oferecem uma oportunidade de redenção - e aperfeiçoamento democrático. A saída do pesadelo passa por Lula eleger como prioridade fundamental desse período ampla e profunda reforma política - que inclua desde o voto distrital à questão do financiamento das campanhas.

Sem novos vagalhões de lama que afundem o chefe de Estado no impedimento, a sociedade civil estará com ele na reforma política. Que desafio. E que destino. Um presidente politicamente débil e a reforma política como tábua de salvação.

Neste momento, até para os que mantêm com o presidente laços de ideologia e afeto, a reestruturação política mostra-se muito mais importante para a história de Lula do que a eventual reeleição. O presidente tem também de se afastar do partido. Atear fogo às embarcações. Permitir que, no PT, os mortos enterrem os mortos. Deve cercar-se, no Ministério e quadro de assessores, por notáveis do serviço público, das carreiras de Estado e da sociedade civil. Despolitizar a política para mudar a política.

Para Lula, mais importante do que fará no futuro é o que o futuro fará dele. A assepsia e reorganização da vida política do país são os instrumentos para que se abrevie a amarga excursão que a alma brasileira percorre no inferno.