Título: É possível confirmar a amabilidade do Rio
Autor: Carlos Lessa*
Fonte: Jornal do Brasil, 14/08/2005, Economia & Negócios, p. A21

O amigo Zuenir Ventura não foi feliz quando qualificou o Rio como cidade ¿partida¿. A presença de gigantescas distâncias sociais e uma ¿promiscuidade¿ com a marginalidade é muito antiga. Nos tempos de D. João VI, o Rio saltou para a urbanidade. É conhecida a mão pesada do major Vidigal e de seus morcegos. Contudo, inspirou Memórias de um sargento de milícias. No coração estava o malandro, que sobrevivia transgredindo no interstício entre o povo e a elite. No Centro Velho do Rio, esteve a chamada Pequena África, grande concentração dos livres e muito pobres. Nela, D. Obá II, amigo de Pedro II e herói da Guerra do Paraguai, fazia a mediação entre o imperador e o popular que subsistia prestando serviços, no comércio ambulante, na preparação de quitutes, no transporte de cargas etc. Já havia cantos de capoeira e, obviamente, como em qualquer tecido urbano, atividades ilícitas estavam inseridas. A elite contratava capoeiras como guarda-costas e, certamente, desfrutava do ilícito.

Ninguém falaria de cidade partida no século XIX. Aliás, o Rio de Janeiro de hoje, como o de ontem, tem como característica antepor o mais caro metro quadrado da cidade ¿ São Conrado ¿ à maior favela da América do Sul ¿ a Rocinha. Maria Graham falava de quilombolas que, nas encostas do Corcovado, produziam hortifrutis para as chácaras milionárias das Laranjeiras.

Nenhum bairro do Rio onde existam residências de muito ricos, ricos, classe média etc. deixa de ter, colada, a habitação de muitas famílias da pobreza, prestadoras de serviços os mais variados. Há, também, o ilícito ¿ até porque o asfalto paga por estas facilidades, e a polícia as reprime. Com freqüência, cobra sua parte. Não há partição, mas simbiose.

Minto: começa a haver. Um misto de paranóia e inspiração no modelo americano tem feito uma multiplicação de condomínios. Segregados da cidade, seus moradores, em tese, obtêm a auto-suficiência. Acostumam-se ao deslocamento para um centro comercial (shopping), onde, sem paisagem, se sentem protegidos. No espaço climatizado e iluminado artificialmente, vêem vitrines e para elas se exibem. Sem dúvida, a criança desenvolvida no condomínio e socializada na catedral de consumo terá pouco de carioca.

Se o Zuenir tivesse aposto o ¿partido¿ a uma observação da Barra da Tijuca, estaria menos equivocado. Apesar disto, alguns jovens de classe média da Barra estão construindo uma ponte ao freqüentarem os bailes funk da favela Rio das Pedras, e irem descobrindo forrós.

A partição antipática a que o Rio está submetido deriva da privatização da segurança pelas empresas. Hoje, é impossível visitar prédios comerciais sem documentos. Em muitos, existem aparelhos de filmagem, máquinas fotográficas, personagens intimidatórios e inquéritos sobre quem você é e a que veio. A segurança privada inverte o princípio básico do policiamento público ostensivo: todo cidadão tem livre circulação porque é inocente até prova em contrário. A segurança privada parte da suposição de que todos são malfeitores potenciais ¿ ou, pelo menos, chatos, incômodos que, como tais, devem ser barrados.

Baldados esforços. A segurança privada não impede assaltos cada vez mais eficientes. O assaltante, com criatividade e estimulado por um tipo de programação televisiva, desenvolve novas tecnologias. Entre a violência ofensiva do assaltante e a tecnologia defensiva privada, há uma dialética em curso pela qual toda defesa pode ser infiltrada, o que exige permanente reforço. Estas barreiras partem a conviviabilidade e realimentam uma ¿cultura de medo¿.

No Rio, o povão não é propenso à partição e rejeita a segregação. Ocupa o espaço público, mobilizado pela festa sem preconceitos, gigantesca e pacífica. É um prodígio a presença de 3 milhões de cariocas nas praias para a comemoração da passagem de ano. Todas as frações sociais, religiões, perfis, ficam horas e horas juntos, numa mansa convivência. A crônica policial nada registra: nem brigas, nem assaltos, nem ferimentos. O povão do Rio se sente seguro no meio da multidão, na praça, se divertindo.

É espetacular o sucesso de qualquer apresentação musical ou teatral de entrada franca. O mamulengo apinha crianças e mães nas manhãs em praça pública. O grupo musical, em qualquer esquina, reúne um círculo. O povão do Rio é ator e espectador de qualquer espetáculo festivo na rua. O futebol de várzea é um renovado sucesso social, o ensaio do bloco é outro, e assim por diante. Creio que o Rio tem o povo da festa. Esta é a cidade musical por excelência. Todos os cantos, inclusive os desafinados.

Deste ponto, quero sugerir ampliar a amabilidade carioca. A cidade tem 1.032 praças. Deveriam a Prefeitura e as organizações da sociedade civil desenvolverem, ao máximo, espetáculos participativos, a céu aberto e sem restrições. Melhor do que cantar, só mesmo dançar. Aliás, a sabedoria popular diz que quem dança seus males espanta. É melhor dançar que malhar em academia ou longas caminhadas. É um gasto nobre de energias o dançar dois a dois: permite desde a coreografia espetacular do casal hiper-treinado da Estudantina até o encosta-bochecha e remexe-esqueleto.

Nada mais lindo, pacífico, cordial, ativo e pra-frente que dançar a dois em praça pública. Sem falar que, em torno da praça, haverá uma competição criativa na oferta de comes e bebes: churrasquinho de gato, versões do Angu do Gomes, pastel, empada, milho verde, refrigerante, cerveja, batidas etc.

Creio que umas 50 praças do Rio poderiam organizar bailes a céu aberto nas noites de sábado sem chuva. A organização da festa exige algumas providências no trânsito, banheiros químicos, montagem de um palco com algum equipamento de som. Se o calçamento for inadequado, até mesmo um tablado. Se à noite nesta praça houver festa para adultos, nada impede construir uma programação que tenha início pela manhã, com atividades voltadas à população infantil: apresentação de palhaços, teatrinhos, jogos de animação, desenho, massinha. À tarde, a praça poderia ser ocupada com apresentações de filmes, leituras de textos, declamação de poesias, karaokê. Poderia haver até mesmo algumas palestras sobre temas da atualidade. O baile seria o grande final.

Sempre me impressionei com a repercussão extremamente simpática ao Rio, na Europa, dos grandes passeios coletivos noturnos de bicicleta. Todos sabemos da espantosa carga negativa, na mídia internacional, dos episódios de violência do Rio. Dada a beleza paradisíaca da cidade, qualquer brutalidade é potencial geradora, como notícia, de um escândalo. Porém, se todos os sábados à noite, em 50 praças da cidade ¿ para começar ¿ houvesse um baile, estaríamos criando a neutralização da violência. Venha dançar conosco ¿ esse seria o convite cordial do Rio.

*Professor do Instituto de Economia da UFRJ e ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (carlos-Lessa@uol.com.br)