Título: O drama oculto da infância
Autor: Waleska Borges
Fonte: Jornal do Brasil, 14/08/2005, Cidade, p. A23

O drama secreto de crianças e adolescentes que sofrem abuso sexual por pessoas da família tem se tornado cada vez mais visível no Rio. Nos últimos dois anos, há registro do aumento de até 70% dos casos notificados às entidades de proteção aos direitos da infância. Vítimas silenciosas de pedófilos - a maioria deles o pai ou padastro - as crianças também estão sendo abusadas por suas mães. O muro do silêncio ainda impede a obtenção de estatísticas absolutas dos casos, mas, no ano passado, a Fundação para Infância e Adolescência (FIA) atendeu 1.957 casos de violência sexual. - O abuso é como se fosse a bomba de Hiroshima caindo sobre a cabeça da criança. Não se produz retratos do fato, mas os efeitos são danoso - compara Jorge Volnovich diretor da Sociedade Brasileira de Estudos e Pesquisa da Infância (Sobepi).

Segundo a defensora Simone de Souza, da Coordenadoria de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (CDEDICA), há dois anos, o órgão registrava pelo menos dois casos de abuso sexual por mês. Hoje, a mesma quantidade de denúncias é feita semanalmente.

Entre os motivos para o aumento de registro estão, segundo a defensora, o aumento do percentual de pais em processo de separação que usam seus filhos para se agredirem. O aumento de notificações por abuso também foi constatado pelo Núcleo de Atendimento de Crianças e Adolescentes, gerenciado pela Sobepi, na Baixada Fluminense.

Levantamento da entidade mostra que, em 2003, foram 109 atendimentos dos casos de abuso sexual. Um ano depois, os registros subiram para 184. De janeiro a julho de 2005, a instituição atendeu 200 casos de maus-tratos, 120 deles de violência sexual.

- Há uma mudança na consciência da sociedade, que está aprendendo a não considerar natural o abuso sexual, o que contribui para o aumento das denúncias. Entretanto, no Rio, a violência do tráfico, a bala perdida, ainda deixa em segundo plano essa violência cotidiana e traumatizante - avalia Volnovich, que reclama da redução dos subsídios públicos para entidades que trabalham com vítimas de maus-tratos.

Segundo especialistas, os abusos sexuais contra crianças costumam ser mantidos em segredo nas famílias, escolas e igrejas. De acordo com Maria Luiza Bustamante, chefe do Serviço de Psicologia Aplicada da Uerj, o abuso sexual na infância ocorre em famílias de todas as classes sociais, entretanto, as denúncias e punições são raras para os mais ricos. Segundo ela, dos casos acompanhados pela Uerj, nos últimos cinco anos, nenhum abusador foi punido. No período, 50% dos denunciados na classe pobre tiveram punição.

- Na classe média alta, muitas mães não enfrentam os pais abusadores para não perder o status. Muitos dos acusados que têm mais dinheiro também se acham acima da lei - comenta Maria.

As meninas costumam ser o alvo mais comum dos abusadores, mas os meninos também podem ser vítimas. As mães, recentemente, começaram a aparecer com mais freqüência entre os autores de abusos. Os psicólogos da Uerj acompanham o caso de um menino abusado pela mãe quando tinha dois anos e meio. A mãe engravidou do colega de trabalho numa única noite de sexo. Os dois são da classe média pobre e não se casaram. A criança vivia com a mãe e passava o fim semana com o pai.

- Um dia o menino deitou-se em cima da avó paterna e disse: ''É assim que a mamãe faz'' - lembra Maria.

Através de perícia, confirmou-se que o menino era obrigado a praticar sexo oral com a mãe, além de ser masturbado por ela, que ainda levava os namorados para praticar sexo com a criança. Ainda em tratamento, hoje aos nove anos, o menino abusado está bem, mas deverá ser atendido por psicólogos na adolescência. Apesar das provas periciais, a mãe da criança não foi presa.

- As emoções traumáticas ficam registradas para sempre. Quase que a totalidade dos casos de abuso sexual na infância é transmitida entre gerações - informa Maria, que atribui o crescimento das notificações à criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que prevê punição ao abusador.

Os especialistas relatam casos de crianças abusadas por babás, professores, síndicos, profissionais de saúde e executivos. Volnovich diz que o relato da criança é colocado em dúvida.

- Geralmente, aquele que abusa é um cavalheiro. Amado pelos funcionários ou colegas de trabalho. Quando acusado, diz que estão armando um complô contra ele - alerta Volnovich.

Presidente da Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência (Abrapia), Lauro Monteiro Filho lembra que até ser emitido um laudo pericial, geralmente, as crianças abusadas falam sobre o caso pelo menos 10 vezes. Segundo ele, estima-se que apenas 10% dos casos de abuso sexual são registrados no mundo.

Para o Juizado da 1ª Vara da Infância e Juventude, o aumento de denúncias não representa, necessariamente, o crescimento de casos. E pode ser atribuído a uma conscientização maior da população sobre o que é o abuso sexual e suas conseqüências, além de um crescimento da credibilidade das autoridades. A 1ª Vara da Infância admite que ainda há subnotificação não só do abuso sexual mas de maus-tratos físicos, psicológicos e de casos de negligência. Dos atendimentos realizados pelo Programa de Atenção à Criança e Adolescentes Vítimas de Maus-Tratos, da FIA, no ano passado, o abuso sexual registrou o maior número de casos, seguidos pelas agressões físicas, psicológicas e negligência.