Título: Por um novo Estado
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 15/08/2005, Opinião, p. A8

Imerso no pântano de corruptos e atulhado de delinqüentes que se espalham pela administração pública, o Estado brasileiro precisa sair mais forte e melhor desta que é a mais grave crise política constatada no país nos últimos anos. Com o Executivo engolfado por obrigações insustentáveis e o Legislativo sem legitimidade moral para promover mudanças substantivas, resta ao país atender às preces da sensatez: a pronta convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte, caminho para que se consiga reconstruir a República, redesenhar o Estado e remover os escombros da desconfiança dos cidadãos.

Antes que a síndrome persecutória - da qual padecem algumas mentes governistas - suspire diante dos ventos da mudança, convém esclarecer: a proposta de uma assembléia constituinte nada tem de golpista ou oportunista. Decorre tão-somente da necessidade de o país sobreviver à tempestade tão perturbadora que vem reduzindo a frangalhos a esperança que venceu o medo. Há razões éticas para sustentar a idéia, mas a proposta se justifica também pelas dificuldades na governabilidade e na governança - duas chaves para a consolidação democrática e hoje ameaçadas por uma Constituição desgastada pelos arranhões sofridos, por uma representação política moralmente esfacelada e pela uma névoa de decepção.

Não basta, porém, convocar-se uma assembléia constituinte. Ela precisa ser exclusiva, e não congressual, de modo que os reformuladores da Carta tenham liberdade suficiente para mudá-la; para que, livres do julgamento das urnas no ano seguinte, disponham-se a promover modificações realmente efetivas. Requer-se, portanto, uma assembléia constituinte desvinculada dos partidos políticos e das corporações, escolhida com base territorial, a partir das circunscrições eleitorais e com integrantes proibidos de participar das eleições seguintes. Conforme o Jornal do Brasil já insistiu em editorial recente, a idéia transcende ideologias. Busca-se uma arquitetura sólida que proteja o Estado de aventureiros e ladrões.

É um alento, então, que algumas iniciativas já ganhem relevo nos corredores e gabinetes do Congresso Nacional, estimuladas pelo empenho de entidades representativas da sociedade civil - é o caso da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), com a anuência de muitos juristas respeitáveis. Tais iniciativas reconhecem a importância para o país que o Congresso reassegure a remissão dos seus pecados e redima-se da imagem em ruínas perante a população. O regime de promiscuidade instalado no país, afinal, tem esmaecido as melhores tentativas de instalação de uma ordem ética e administrativamente eficaz.

O Brasil, sublinhe-se, tem uma boa Constituição. Não lhe cabe, por exemplo, a culpa pela corrupção dos costumes políticos. É a mais democrática de toda a história do país, além de consagrar valores fundamentais da pessoa humana e dar força jurídica a princípios notáveis, como a liberdade, a igualdade e a justiça social. Trata-se, contudo, de uma obra imperfeita. Falhas e ambigüidades, muitas das quais provocadas pelo excesso de emendas, têm dado ao Supremo Tribunal Federal o poder de legislador, e não apenas de guardião da Carta. Embora jovem, a Constituição, de 1988, já recebeu mais de 700 propostas de emenda. No curto espaço de 17 anos, foi alterada 47 vezes por emendas e seis por revisão - incluindo a instituição da reeleição para a chefia do Executivo.

Ademais, o prognóstico do então presidente da República José Sarney confirmou-se na prática. O hoje senador, logo após promulgá-la, alertou que o país se tornaria ingovernável em alguns anos - resultado de um estupendo conjunto de boas intenções que se revelariam inviáveis na prática. É inútil tentar consertar um texto desfigurado por sucessivos remendos. É inconcebível insistir no erro de manter uma Constituição que contribui para eternizar rombos financeiros, desestabilizar o pacto federal, desorganizar o sistema administrativo e inviabilizar a gestão fiscal do Estado. Uma orientação humanista, bem-vinda e necessária, não pode existir à custa do sacrifício e do estrangulamento da maioria em benefício de poucos.

Insista-se: uma Assembléia Nacional Constituinte inclui-se entre as ações exigidas para a assepsia e reorganização da vida política brasileira. Sem uma nova Constituição, seguiremos a promover reformas de esparadrapo, conduzidas pelos ventos das circunstâncias.