Título: Novo equilíbrio de poder
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Fonte: Jornal do Brasil, 19/08/2005, Opinião, p. A10
As reformas sugeridas esta semana pelo senador José Sarney (PMDB-AP), num dos mais importantes discursos proferidos no turvo palanque da crise, reafirma a necessidade de uma nova Constituição Federal. Com a sutileza de um político experiente, a credibilidade de ex-presidente da República e a ênfase de um líder inconteste do Senado, Sarney apontou saídas constitucionais criativas que poderão resultar num ambiente institucional mais eficaz para a superação de instabilidades agudas - decorrentes, no caso atual, de uma aliança governista em xeque, de um partido desfigurado pelo poder e de um Congresso moralmente pouco confiável. O senador propôs a adoção do chamado semipresidencialismo - uma combinação entre parlamentarismo e presidencialismo, no qual o Congresso ganha papel mais relevante e ao presidente estão garantidos papéis fundamentais, dentre os quais os de árbitro do governo, símbolo supremo da unidade nacional e comandante-em-chefe das Forças Armadas. O próprio Sarney, então presidente da República, já havia oferecido argumentos sólidos para a necessidade de revisão da Carta. Logo depois de promulgada, em 1988, alertou que o país se tornaria ingovernável em alguns anos - resultado de um estupendo conjunto de boas intenções que se revelariam inviáveis na prática. Também se viu uma Constituição parlamentarista em vigor num regime presidencialista, o que provocou problemas adicionais de governabilidade. Com um presidencialismo congressualista, afinal, o Executivo depende de um sistema de agregação para governar. Por exemplo, o PSDB de Fernando Henrique, de centro-esquerda, aliou-se à centro-direita. O PT de Luiz Inácio Lula da Silva, originalmente de esquerda, optou pela cooptação de pequenos partidos habitualmente sequiosos de negociatas públicas. Tais parceiros deram o apoio parlamentar ao preço da corrupção.
Não obstante a trágica constatação dos efeitos espalhados por todos os poros do poder, o dúbio sistema criado pela atual Constituição já passou por duros e sucessivos testes nas últimas duas décadas - entre planos econômicos desestabilizadores, impeachment do presidente Fernando Collor e culminando com a instalação de um governo de esquerda. Institucionalmente, o país atravessou os campos de batalha política e manteve a solidez democrática. Chegou o momento, contudo, de aperfeiçoá-la, por meio de pilares sólidos, capazes de sustentar a democracia no longo prazo. A tarefa exige uma reforma política ampla, muito além de mudanças cosméticas de circunstância. Como afirmou o senador José Sarney no seu discurso, a reforma política é necessária porque as raízes da crise estão nas falhas históricas do sistema eleitoral. ''O atual sistema partidário-eleitoral chegou ao fim. Apodreceu'', disse o ex-presidente, alertando ainda para o fato de que um Congresso fraco abre espaço para ''fórmulas salvadoras''.
Com uma Constituição desfigurada por sucessivos remendos e com um sistema que requer correção, o Brasil precisa de uma Assembléia Nacional Constituinte exclusiva. Trata-se de um caminho essencial para a assepsia e reorganização da vida política do país - justificado por um Executivo engolfado por obrigações insustentáveis, por um Legislativo sem legitimidade moral para promover mudanças substantivas e por um sistema que amplia os custos do diálogo entre os dois poderes. Há 12 anos, o Brasil rejeitou a proposta de instituição do parlamentarismo. Hoje, não faltam argumentos sólidos entre defensores dos dois sistemas. Os fatos sugerem que esse tema seja incluído no debate público. Dos 46 países independentes existentes hoje na Europa, 21 são semi-presidencialistas. Se conduzida com seriedade e sem oportunismos, a discussão sobre o assunto significará o primeiro passo rumo a um novo equilíbrio de poder.