Título: Os cambitos curtos da potoca
Autor: Villas-Boas Corrêa
Fonte: Jornal do Brasil, 19/08/2005, Outras Opiniões, p. A11

Despejado pela enchente da corrupção que alterou a confortável rotina das viagens domésticas e internacionais para as exibições de sua facilidade nos improvisos, o presidente Lula parece que levita no espaço, perdeu o contato com a realidade e do alto enxerga o mundo que gostaria de ver pelas lentes da fantasia. O que diz não faz sentido, nem mesmo como tática de fuga ou manobra para enganar o distinto público, cada vez mais indignado, como demonstram as recentes pesquisas. No giro inaugural da semana da murcha campanha pela reeleição - que rima com maratona da salvação - passou da medida. Para começo de conversa, o pretexto foi ridículo: a inauguração de obras de eletrificação rural do projeto Luz Para Todos, no assentamento de Amaralina, a nove quilômetros da cidade baiana de Vitória da Conquista. Público escasso de cerca de três mil pessoas, arregimentado pelos aliados do MST e da Federação dos Trabalhadores em Agricultura, transportados por 36 ônibus, gentil oferta do prefeito petista José Raimundo.

No cenário de festa do interior, galgou o palanque, empunhou o microfone e produziu esta pérola de absurdo, de escorregão no piso do ilógico: ''Sou um homem tranqüilo porque tenho a minha consciência limpa''. Emendou, subindo o tom: ''E não são poucos os que querem jogar para dentro do Palácio algum erro, algum processo de corrupção''.

Que embale o sono e o sonho com a inocência dos olhos vendados, vá lá. Mas trocar o rumo da varredura do lixo, passa da conta. O esforço em que se esbofa na correria atrás de auditórios é exatamente para varrer o lixo acumulado à porta do seu gabinete e despejá-lo no cesto da oposição, das elites, das CPIs, que tentam desestabilizar seu governo de grandes realizações e fantásticos êxitos estatísticos.

Não é o que se enxerga daqui da planície. O governo, por muitas das suas bocas, mente sem sinal de rubor na face. Nos apertos da sua degringolada, Lula desfia as contas do rosário dos sucessos do governo negados pelo golpismo. O diabo é que os números desmentem a rósea imagem do tudo vai bem da madame francesa. Os percentuais das verbas liberadas até julho, na mesquinharia de 4% do Orçamento de 2005, arrancam a máscara da empáfia e expõem a paralisia do monstrengo ministerial. Dos R$ 22 bilhões previstos para investimentos, apenas R$ 886,8 milhões foram gastos em obras de emergência.

Pilhado em flagrante, o governo correu a tapar os buracos da sua notória incompetência e anunciou a liberação de um bilhão de reais para os quatro meses e meio deste ano. Com o descaramento de negar que despertou da sonolência cutucado pela denúncia. E sem explicar que só no apagar da vela escancarou o cofre da Viúva, desfalcado pelos saques da corrupção.

Em outro exemplo didático de desembaraçada reincidência na hipocrisia, o mesmo governo que humilhou os servidores públicos, os aposentados e pensionistas com o aumento de 0,01% para fingir que cumpria a exigência constitucional, encolheu-se como um coelho acuado com a desenvolta articulação do ministro Nelson Jobim, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) para a aprovação, pelo Congresso, da proposta de aumento de R$ 19 mil para R$ 21.500 dos vencimentos do ministros da mais alta corte da Justiça. Com os penduricalhos do pagamento dos atrasados, desde 1 º de janeiro e a extravagante e cautelosa previsão de novo reajuste para R$ 24.500 no próximo ano.

Lula sancionou sem um resmungo de discordância a brilhante tacada da toga, que irriga, em cascata, os reajustes de desembargadores, juízes, promotores em todo o país.

Com as calças encolhidas pelo desatino dos venerandos senadores que aprovaram o aumento do salário mínimo para R$ 384, jogou duro para derrubar na Câmara a prodigalidade, restabelecendo os chorados R$ 300.

No caso, desculpe-se a angústia da equipe econômica. Mas, no jogo das contradições, o governo expõe sem retoques o oportunismo do seu compromisso de campanha de combater as injustiças sociais e a odiosa desigualdade na distribuição de renda.

O PT, na hora de abastecer o caixa dois e engordar o mensalão, ouviu o conselho sábio de Mateus.

Villas-Bôas Corrêa escreve às quartas e sextas-feiras.