Título: Trabalho escravo a 41 km do Planalto
Autor: Bruno Arruda
Fonte: Jornal do Brasil, 25/08/2005, Brasília, p. D3

Na Fazenda Tamanduá, localizada no núcleo Rural Ponte Alta, no Gama, a 41 km do Ministério do Trabalho, 16 famílias vivem, há 25 anos, como no Brasil não se permite desde a assinatura da Lei Áurea. As tristes histórias de três gerações de colonos começam em 1971, quando o mais antigo morador chegou para trabalhar na que era então uma fábrica de cerâmica. Deve terminar, esperam as autoridades que fizeram blitz no local na manhã de ontem, com a punição dos culpados pelas atrocidades e com a reabilitação das famílias. Domingos Batista de Souza, de 64 anos, veio do Piauí para trabalhar na olaria Santa Maria, propriedade de Gilmar Luiz Borges, em 1971. Nicanor Machado chegou três anos depois. As rotinas dos dois era acordar de madrugada, trabalhar nos fornos em que a cerâmica era cozida e permanecer à disposição do patrão durante à noite, quando eram frequentemente acionados para recepcionar carga entregue sem nota fiscal.

Com salário, recebiam quinzenalmente um vale, chamado entre eles de Língua de Vaca: um pedaço de caderno com um valor anotado que podia ser convertido em mantimentos no mercado Britilar, no Gama. Para chegar lá, eles e os outros colonos iam no único caminhão disponível, todos juntos, quando eram liberados.

As roupas e os outros poucos objetos encontrados nas casas que se assemelham a cavernas, eram doados por familiares ou pelo patrão. A cerâmica foi fechada em 1993, depois da primeira constatação pública da exploração ocorrida no local. Mas o ''dono'' da terra, na verdade um permissionário, continuou utilizando os serviços dos colonos.

- De 1993 até 2002 trabalhei na roça e ensacando esterco. Ganhava feira e energia elétrica. Depois ele cortou a energia elétrica - disse Domingos, que ficou cego, não sabe se por causa das altas temperaturas dos fornos de cerâmica ou pelos compostos químicos misturados ao esterco que faziam ''queimar seus olhos''. O outro veterano, Nicanor, não enxerga de um olho.

Em 2002, Gilmar Borges pediu que os colonos deixassem as casas. Segundo os moradores, o permissionário estaria interessado em parcelar o terreno. Sem ter para onde ir, foram aconselhados por parentes a buscar ajuda judicial - assim conseguiram cassar uma liminar de reintegração de posse da fazenda concedida a Gilmar. A partir daí, contam Domingos, Nicanor e outros, como Vera Lúcia dos Santos, o fazendeiro tem feito ameaças de morte e impedido que cultivem hortas ou reformem as moradias.

Também passou a utilizar as crianças, filhos dos filhos dos primeiros moradores, para cortar a cana que é servida ao gado - 80 cabeças, a única produção efetiva nos mais de 200 hectares. Os meninos também ensacam esterco - por R$ 0,10 a saca. Hoje, três meninos da região fazem esses trabalhos, e o de ordenhar as vacas.

Até hoje, 12 anos depois do fechamento da cerâmica, ninguém recebeu direitos trabalhistas. Ninguém teve baixa na Carteira de Trabalho. Apesar de as infrações aos direitos laborais prescreverem em dois anos, conforme o procurador Alessandro Santos, representante do Ministério Público do Trabalho na blitz, o caso de Gilmar pode ser diferente.

- Já estamos em processo investigatório. Devemos fazer outras visitas e se comprovarmos que as pessoas continuaram trabalhando, em outras atividades, para a mesma pessoa, ou o trabalho escravo, podemos fazê-lo pagar a cada um o que deve - disse o procurador.

O MPT vai pedir ao MPDFT que enquadre o permissionário pelos crimes e intimar Gilmar a apresentar toda a documentação trabalhista no prazo de dez dias úteis. Além das reposições, a multa pode chegar a R$ 1 milhão.

Conforme a presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Legislativa e organizadora da blitz, Érika Kokay, tão importante quanto punir Gilmar é recuperar as pessoas.

- Já temos conversas com o Ministério de Desenvolvimento Social, precisamos incluir essas crianças em programas de erradicação de trabalho infantil e ajudar os adultos a reorganizarem suas vidas. as pessoas não podem ser usadas como se coisas fossem e depois descartadas - disse a deputada.

O permissionário Gilmar Borges chegou ao local atrasado e negou todas as acusações. Caiu em contradição ao dizer que não tinha empregado nenhum e depois admitir que tem um vaqueiro sob suas ordens. A Comissão de Direitos Humanos da Câmara pediu à Gerência Regional do Patrimônio da União relatório sobre o terreno, hoje cedido pela Secretaria de Agricultura.

Conforme o secretário Pedro Passos, que nega conhecer Gilmar, a terra está concedida a ele até 2007. De acordo com o contrato, pode usar o terreno para qualquer atividade agropecuária. Em 1998, vendeu os direitos de uso para Marcelo Mendonça, mas a transação não chegou a ser formalizada, segundo Passos. Em 2004, Gilmar Borges pediu renovação da concessão.

- Ele não pode, por exemplo fazer indústrias ou parcelar. Senão perde a concessão - disse o secretário.