Título: Delação premiada
Autor: Dalmo de Abreu Dallari
Fonte: Jornal do Brasil, 27/08/2005, Outras Opiniões, p. A11

Nos últimos tempos vem aparecendo com freqüência no noticiário de crimes a informação de que os investigadores estão utilizando uma prática que se convencionou chamar de ''delação premiada''. Isso vem ocorrendo no âmbito policial, com a participação ativa de membros do Ministério Público, tendo sido também referida essa possibilidade nas investigações promovidas pelas Comissões Parlamentares de Inquérito. A delação premiada seria, em síntese, uma associação dos investigadores com criminosos investigados, para que estes forneçam informações sobre outros criminosos, bem como sobre organizações e métodos da delinqüência. A notícia do uso desse expediente vem surpreendendo e, em certos casos, chocando a opinião pública, causando indignação, pois algumas notícias, vagas e imprecisas, sugerem que criminosos notórios, já condenados e recolhidos à prisão, seriam imediatamente libertados em troca do fornecimento de informações sobre seus comparsas, a localização e a ramificação das organizações e ainda sobre os beneficiários das ações criminosas.

A questão é grave e de enorme interesse social, pois além de ser chocante a idéia de que um criminoso já condenado, com a culpa reconhecida por um juiz, fique livre da punição e ganhe imediatamente a liberdade, existe o temor, para alguns a certeza, de que uma vez em liberdade é muito provável que eles retomem o caminho do crime, agora com mais segurança e tranqüilidade por serem amigos e sócios da Polícia. Para muita gente é chocante o aspecto ético, pois é difícil aceitar que as autoridades se nivelem à delinqüência, tornando-se sócios nas ações de investigação e busca de punição de criminosos, além de ser também uma agressão à ética a concessão de prêmios aos que praticam a torpeza de trair amigos, companheiros e associados, cuja intimidade conhecem justamente por agirem juntos, solidários na delinqüência, praticando essa traição em troca de vantagens pessoais.

Por tudo isso, é importante que o povo brasileiro seja mais informado a respeito da delação premiada e da possibilidade legal de utilizá-la. Uma das coisas que se tem dito é que a polícia brasileira, assim como muitas outras polícias do mundo, já fazem isso há muito tempo, tendo conseguido prender delinqüentes perigosos e desbaratar organizações criminosas graças à colaboração de criminosos arrependidos ou simplesmente oportunistas. Com alguma freqüência tem sido lembrado o exemplo da Itália, ressaltando-se que foi fatal para a máfia o comportamento de criminosos arrependidos, que delataram seus companheiros aos Juízes investigadores, em troca do perdão para os seus crimes.

No Brasil, uma lei recente estabeleceu a possibilidade de negociação com um acusado ou condenado, para obtenção de uma delação e a concomitante concessão de um benefício, que será o prêmio pela colaboração com as autoridades. O principal argumento para tal inovação foi a alegação de que só por esse meio se pode combater com eficiência o crime organizado, que, além de estabelecer ramificações que vão além-fronteiras, dificultando a perseguição dos criminosos e o acompanhamento das pistas, hoje utiliza recursos técnicos muito sofisticados, que mascaram as ações criminosas, tornando extremamente difícil a investigação.

A possibilidade legal de utilizar a delação premiada está prevista expressamente na Lei nº 9.807, de 13 de julho de 1999, que, segundo sua longa ementa, visou vários objetivos. Com efeito, de acordo com a ementa, a lei tem finalidade múltipla, assim enunciada: ''Estabelece normas para a organização e a manutenção de programas especiais de proteção a vítimas e a testemunhas ameaçadas, institui o Programa Federal de Assistência a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas e dispõe sobre a proteção de acusados ou condenados que tenham voluntariamente prestado efetiva colaboração à investigação policial e ao processo criminal''.

O artigo 13 da lei estabelece que o juiz poderá conceder o perdão judicial e livrar definitivamente da punição o acusado que tenha colaborado com a investigação e o processo criminal. Para obter esse prêmio o acusado deverá ser réu primário e sua colaboração deverá ter produzido resultados concretos no combate ao crime. Devem também ser consideradas a personalidade do criminoso a ser beneficiado e as características de suas ações criminosas, entre as quais sua gravidade. Pelo artigo 14 o prêmio, consistente em redução da pena no caso de condenação, poderá ser concedido ao acusado ou indiciado, observadas as mesmas cautelas estabelecidas no artigo 13. É nisso que consiste a delação premiada, que, apesar de seus graves efeitos sociais, podendo produzir muitos efeitos negativos, entrou na legislação brasileira sem que houvesse uma discussão