Título: Livro propõe uma história do pensamento por meio da poesia
Autor: Sergio Mota
Fonte: Jornal do Brasil, 27/08/2005, Idéias & Livros, p. 1

Poucas trajetórias intelectuais têm a consistência e a durabilidade da história de Adauto Novaes. Sua irrepreensível capacidade de articular discursos das mais variadas frentes o assemelha a uma espécie de Marisa Monte do meio intelectual, porque é seguido tanto por fiéis admiradores que freqüentam a academia e que naturalmente estão mais familiarizados com as discussões travadas nos vinte anos de seminários, quanto por um público leigo ávido de conhecimento e curioso de ver as diferentes abordagens de um mesmo assunto. Sem prejuízo da comparação, Adauto Novaes toca na AM e na FM. Em tempos de vulgarização da filosofia, que transforma o conhecimento em discussões palatáveis com a falsa rubrica de aproximá-la do leigo, o trabalho de Adauto Novaes nem de longe é apenas aplicação da filosofia ao conhecimento de nossa cultura. Os concorridos ciclos de conferências, publicados em livros, solidificaram um tipo de exercício de cultura elevada sem par no Brasil. Isso tudo porque intentam discutir a sociedade, sem didatismos rasteiros, deflagrando o debate em torno de nossa experiência cultural.

Em Poetas que pensaram o mundo, temas discutidos em livros anteriores reaparecem e gravitam em torno da relação entre ética, política e cultura. O volume pode funcionar como complementação de uma trilogia involuntária, iniciada com os livros Tempo e história e Artepensamento. Mais do que tratar a história do pensamento humano sob a ótica da poesia, o livro reordena as forças que aproximam a filosofia da poesia. Não é à toa que os poetas escolhidos como tema das palestras podem ser enquadrados na categoria de poetas-pensadores, cujas obras insistentemente refutam a clássica oposição entre poesia e pensamento, jogando por terra qualquer dicotomia nesse sentido. Tal estratégia é reforçada pelo fato de que os poetas escolhidos são apresentados, em grande parte, por filósofos, autores e professores que ocupam uma espécie de intermédio da filosofia e da poesia. Ou são poetas ou especialistas em poesia ou as duas coisas, caso de José Miguel Wisnik (Drummond), Antonio Cícero (Hölderlin), Michel Déguy (Valéry), Marcelin Pleynet (Rimbaud).

O fato de a seleção dos poetas, com exceção de Drummond, ignorar a poesia brasileira (Bandeira, Cabral ou Quintana deveriam estar no rol de escolhidos), não chega a se configurar como um defeito.

A estratégia de colocar Drummond abrindo o livro e, na seqüência, Lucrécio, Dante, Shakespeare, Camões, Goethe, Eliot, Baudelaire, Rimbaud, Francis Ponge, Fernando Pessoa e Homero, parece ter sua razão de ser. Não só pelo fato de a coletânea evocar o centenário de Drummond, comemorado em 2002, mas, principalmente, porque o vigoroso texto de Wisnik pode funcionar como catalisador dos outros textos. Ou melhor, como se os temas do poeta mineiro, mais que universais, se desdobrassem em direção às dimensões propostas por parte dos poetas escolhidos, que também vão pensar o mundo na tentativa (frustrada às vezes) de explicá-lo.

Wisnik parte da análise de ''A máquina do mundo'', lembrando uma premissa de que ''talvez nenhum poeta, no Brasil ou no mundo, diga tanto a palavra 'mundo' em seus poemas, como Carlos Drummond de Andrade''. Nas reflexões sobre o mundo que se configuram em todo o livro, está em evidência a posição do tempo e o seu significado para a forma artística. Não se trata de documentar essa dominante posição do tempo na literatura poética, mas de compreender que o tempo na poesia de Drummond e, por extensão, na de Camões e Pessoa, guardadas as dimensões da aproximação, é a consciência do tempo como fração do vago passado de experiências. Wisnik discute como a reflexão poética do escritor corroborou a visão dos impasses do mundo contemporâneo, contestados na possibilidade e na impossibilidade do fazer poético, na sua impotência e na sua potência. Daí, a análise da ''máquina do mundo'', espécie de caixa de Pandora, que revela as engrenagens mais secretas do universo. Tais impasses são traduzidos na forma de um tempo sentido, categoria indispensável para a vida. Entretanto, o poeta diante do mundo é reincidentemente confrontado com um dilema peculiar. Por um lado, o tempo está ligado à essência; por outro, as experiências no tempo são tais que parecem afastar o objetivo dessa descrição: a possibilidade de reconstruir e justificar a noção de uma vida contínua ou de um eu idêntico.

Essas reflexões sobre tempo e mundo reverberam nas análises de Fernando Pessoa, por Haquira Osakabe; de Camões, por João Adolfo Hansen; e na análise do poema ''Vento do nordeste'', de Paul Valéry, por Michel Déguy.

Muito pelo fato de os textos sobre os autores conjugarem o poético e o histórico, Poetas que pensaram o mundo possui uma natureza vaga, no próprio sentido que o adjetivo tem, porque propõe uma multiplicidade de caminhos, à espera de leitores que preencham lacunas. Segundo a introdução de Adauto Novaes, ''é um livro concebido não para falar de poesia apenas, mas de uma história do pensamento por meio da poesia''. Como é de praxe nos livros organizados por ele, o previsível resultado não incorpora linearmente todos os temas possíveis. Ao contrário. Respeita sua alteridade, permitindo-lhes que irradiem em direções díspares a partir de um centro comum.

Está na raiz da conclusão de quase todos os textos sobre os poetas o fato de que, ao apreender um sentimento ''verdadeiro'' e ao apresentá-lo ''verdadeiramente'' por meio de expressão literária ímpar, a obra poética traz à vida e à consciência o que podemos ter sentido e pensado sem o saber. Nada há místico nesse processo. Ele meramente descreve o que todo mundo já sabe, isto é, que as artes preenchem uma função não reproduzida por qualquer outro processo simbólico inventado pelo homem. A poesia que pensa o mundo diz coisas que não podem ser expressão em qualquer forma de prosa, por mais exata, precisa e lógica.