Título: O espírito democrático de Juscelino
Autor: Eduardo M. Suplicy
Fonte: Jornal do Brasil, 28/08/2005, Outras Opiniões, p. A11

O Senado Federal amanhã faz sessão especial para celebrar o 26º ano da Lei da Anistia. Nestes dias em que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva recordou os procedimentos do presidente Juscelino Kubitschek, afirmando que seguirá o seu exemplo de ter muita paciência, cabe recordar algumas de suas principais qualidades. Dentre elas a de ser extremamente democrático e generoso. Tinha enorme disposição de dialogar com o povo, com a imprensa, com todos os segmentos da população e com os congressistas. Com freqüência dava entrevistas coletivas à imprensa, respondendo a todo tipo de pergunta. Tudo com bom humor. Seu espírito democrático pode ser caracterizado por um episódio marcante, que ainda sexta-feira foi recordado pelo jornalista Fernando Mitre, da TV Bandeirantes. Certo dia Juscelino atravessou enorme manifestação dos estudantes da UNE levando prolongada vaia. Quando chegou ao final da mesma, pegou o microfone e disse: ''Feliz é o país em que os estudantes podem vaiar o presidente da República''. Foi então fortemente aplaudido. Juscelino Kubitschek é sempre lembrado por ter enfrentado duas tentativas de militares para derrubá-lo. Oficiais rebeldes da Aeronáutica levaram aviões para Jacareacanga, em 1956, e Aragarças, em 1959. Antes de deixar a presidência Juscelino resolveu anistiá-los, mostrando seu espírito conciliatório.

O presidente Lula, em seu último discurso, assegurou que ''a verdade prevalecerá e o povo brasileiro vai saber o que está acontecendo no Brasil, o que está por trás do que está acontecendo no Brasil, quem são os ocultos ou não, porque os públicos nós já sabemos, e vai saber, concretamente, quem praticou ou não corrupção neste país''.

Há hoje um vivo debate na sociedade, já que por toda parte se comenta em que medida houve conhecimento e responsabilidade do presidente sobre os episódios que vieram à tona nos últimos 100 dias. O presidente Lula afirmou também: ''Estaremos muito mais vigilantes do que já estivemos em qualquer outro momento, e cada um dos meus companheiros sabe que pode ser o meu melhor amigo, dentro ou fora do PT, dentro ou fora do governo mas, se cometer alguma coisa de equívoco de conduta, com a mesma grandeza que eu o convidei para vir para o governo, eu o convido para deixar o governo e, depois, ele responderá onde tiver que responder''.

A esta altura dos acontecimentos, depois de ter tido a oportunidade de conversar com pessoas envolvidas de alguma forma nos eventos que são objeto de apurações, muitos avaliam que será positivo que ele próprio possa dar a sua contribuição e transmitir à nação toda a verdade que conheceu e que sabe. Saberá ele a forma de proceder - e o espírito democrático de Juscelino poderá certamente inspirá-lo.

Se hoje o objeto político consiste em desbaratar esquemas espúrios de apropriação do bem público, há 26 anos a questão residia em resgatar condições mínimas de respeito à convivência republicana, à participação democrática, ao respeito aos direitos humanos. Em ambas as situações trata-se de aplicar antídotos institucionais inescapáveis à boa saúde de um corpo político.

A anistia aos exilados e aos presos políticos coincidia, à época, com o aceno institucional rumo a experiências políticas mais livres e democráticas, dentro de um contexto de insuportável intransigência militar. A famigerada Lei de Segurança Nacional vigorava implacavelmente contra a liberdade do povo, reprimindo de forma violenta qualquer gesto de discordância, crítica ou protesto.

Em 1979, quando a ditadura militar previa o desabamento institucional que se avizinhava no horizonte, surgiam novas lideranças no espectro político brasileiro, dentre as quais o então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema, Luiz Inácio Lula da Silva, se destacava, ao lado de grandes figuras como Ulisses Guimarães e Teotônio Villela.

Em vez de um processo amplo, geral e irrestrito, decidiu-se pelo modo lento, gradual, mas irremovível, de abertura política. A aclamação pela anistia virou mote obrigatório para o restabelecimento do Estado de direito, pelo resgate da liberdade política, pela restituição do espaço democrático.

A partir da Lei 6.683/79, centenas de exilados políticos readquiriram o direito de regresso ao Brasil e os presos deixaram as prisões, encerrando 15 longos anos de ausência, abandono e silêncio. Dentre os que voltaram, depois de 13 anos de exílio na Argélia, desponta a imagem de Miguel Arraes que simbolizava o futuro com dias melhores, mais justos e livres, onde pudéssemos ter a expectativa de que iríamos eleger pessoas de comportamento ético exemplar.

Conforme tem destacado o grupo Tortura Nunca Mais, a anistia brasileira também deixou muito a desejar, sobretudo à luz da permanência incompreensível de arquivos ainda indevassáveis da ditadura. Possa o presidente Lula contribuir decisivamente para que a verdade completa venha inteiramente à tona, tanto sobre os anos da ditadura militar, quanto sobre o que tem acontecido durante o seu próprio governo.