Título: Além do Fato: Entre extremos
Autor: Sheila Machado
Fonte: Jornal do Brasil, 28/08/2005, Internacional, p. A12
Para além da instabilidade política que parece tragar os governos de um número considerável de países na região, a integração regional sofre um novo revés com a visita do secretário de Estado americano, Donald Rumsfeld, neste mês, ao Paraguai. Apesar de relâmpago, a visita reforça uma das tendências que vêm se impondo à integração na América do Sul, principalmente a partir da crise política brasileira: a inclusão de alguns países da região na agenda de segurança americana. Diante da introspecção brasileira causada pela crise política, a região parece dançar entre dois novos extremos: a amizade e cooperação americana, uma das mais antigas tentações das políticas externas dos países da América do Sul, e a integração bolivariana proposta pelo presidente venezuelano Hugo Chávez. Até o momento, a escolha paraguaia é clara. De fato, a guinada na política externa do país em direção aos EUA teve início com a visita a Washington do vice-presidente paraguaio, Luis Alberto Castiglioni, no final de maio e início de junho deste ano. Durante a visita, Castiglioni se reuniu com o vice-presidente americano, Richard Cheney, com o secretário de Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld, e com outras autoridades responsáveis pela defesa e segurança, como o então secretário para Assuntos do Hemisfério Ocidental, Roger Noriega, e membros do departamento de Antinarcóticos e Antiterrorismo do Departamento de Estado.
Pouco tempo depois desta visita, no dia quatro de julho, um contingente de soldados americanos desembarcou em solo paraguaio, onde permanecerá pelo período de um ano e meio para treinamento e a realização de exercícios em conjunto com as Forças Armadas do Paraguai. Ao chegar ao Paraguai, os soldados americanos já gozavam de imunidade concedida pelo governo do país através de um acordo firmado com o governo dos EUA cercado de sigilo e criticado pela imprensa e membros da oposição paraguaia. Segundo fontes consultadas pela imprensa deste país, o acordo concede aos soldados americanos as mesmas prerrogativas concedidas a diplomatas, o que impede que sejam levados a julgamento fora dos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, o acordo permite que as tropas americanas circulem livremente pelo território paraguaio e as autoriza a transportar medicamentos e armamentos para qualquer lugar do país.
A chegada das tropas americanas ao Paraguai levantou suspeitas, reavivadas pela recente visita de Rumsfeld, de que seriam instaladas bases militares dos EUA no país, a aproximadamente 200 km de sua fronteira com a Bolívia, o que levou o governo deste país a pedir informações à embaixada paraguaia em La Paz. Em resposta, tanto o Ministério das Relações Exteriores do Paraguai quanto a embaixada americana no país negaram a existência de qualquer acordo neste sentido.
Com a visita de Rumsfeld, primeira vez em que um secretário de Defesa americano visita o Paraguai, a aproximação política e estratégica entre Washington e Assunção é selada. Cercada de sigilo, a visita foi vista por muitos como uma reação americana ao possível protagonismo de Hugo Chávez na região, favorecido pela alta no preço do petróleo. As repercussões no país foram imediatas. No mesmo dia da visita, no Congresso paraguaio, deputados da oposição criticaram a postura do presidente, Nicanor Duarte Frutos, e a adoção de uma política externa ¿mendicante¿ pelo seu governo.
Mendicante ou não, a nova estratégia da política externa de Duarte Frutos tem suscitado a generosidade americana para com Assunção. No dia seguinte à visita de Rumsfeld ao país, o governo paraguaio anunciou a decisão do departamento de Agricultura americano de aumentar as importações de açúcar produzidos no país. Segundo o ministro da Defesa do Paraguai, Roberto González, que acompanhou o encontro entre Rumsfeld e Duarte Frutos na residência presidencial, este é o primeiro passo do prometido apoio americano à recuperação da economia do país. González negou a tão especulada possibilidade de instalação de uma base militar, mas afirmou que Rumsfeld indagou o presidente Duarte Frutos sobre as relações entre seu governo e os da Venezuela e de Cuba.
Poucos dias antes da visita do secretário de Defesa americano, durante discurso feito em um evento oficial, Duarte Frutos reclamou da falta de solidariedade dos governos brasileiro e argentino com relação ao pedido de revisão dos tratados firmados há anos com estes países, referentes ao aproveitamento do rio Paraná para a geração de energia elétrica, tratados estes considerados prejudiciais ao Paraguai por seu governo. No discurso, Duarte Frutos disse esperar que os governos Lula e Kirchner, que defendem a solidariedade e o fortalecimento do Mercosul, ¿escutem a voz do povo paraguaio e busquem justiça na região¿.
O discurso do presidente traz à tona mais uma das dificuldades enfrentadas pelo Mercosul, fortalecendo a prioridade dada pelo Paraguai a suas relações com os EUA. As fissuras no bloco, já enfraquecido pelas divergências e dificuldades enfrentadas pelos seus membros, abrem mais espaço para a atração exercida pelos Estados Unidos sobre alguns países da região bem como para outras propostas de integração, como a Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba), do presidente Hugo Chávez. Uma vez envolvido em sua própria crise, um dos principais membros do bloco, além de um dos maiores interessados em seu sucesso, a integração fica órfã.