Título: Some o peixe, entra o lixo
Autor: Branca Nunes
Fonte: Jornal do Brasil, 28/08/2005, Rio, p. A23

O sol ainda não apareceu no horizonte quando Carlos de Oliveira Borges se levanta para preparar uma xícara de café preto e comer uma fatia de pão com manteiga. São 5h e terá início mais um dia de trabalho. A distância que separa a casa e o cais improvisado na pequena colônia de pescadores de Nova Holanda, em Bonsucesso, é vencida em poucos minutos. Carlos verifica se os remos estão em ordem, enche uma garrafa com água potável, crava o punhal entre duas madeiras da lateral do barco e desprende a corda que segura a embarcação. Alguns metros adiante, no mar da Baía de Guanabara, o pescador encontra o que procura: garrafas plásticas. Carlos é um, entre tantos antigos pescadores, que tiram das garrafas pet a garantia da sobrevivência.

Quando tinha 30 anos, Carlos se viu obrigado a trocar os peixes pelo plástico. Hoje, com 51, o homem de cabelos longos, mãos ásperas e olhar franco, acha que fez um bom negócio.

- Se eu fosse viver da pesca, morreria de fome - sentencia o pescador de garrafas.

Todos os dias, ele percorre dezenas de quilômetros pelas águas da baía. Há três anos, uma embarcação motorizada, que facilitava seu trabalho, foi roubada. Hoje, o barco a remo, construído por ele, agüenta bravamente o trajeto que inclui, entre outros lugares, as praias de Niterói, Catalão, Bom Jesus, do Caju e da Ilha do Governador.

Por dia, Carlos chega a pescar até 200 quilos de garrafas. Pacientemente, elas são resgatadas uma a uma, com as próprias mãos. Algumas estão boiando no centro da baía e muitas outras nas margens, agarradas aos manguezais ou na areia das praias.

A limpeza das águas não se limita às pets. O pescador também junta o lixo pesado que encontra, como cadeiras, pneus, pedaços de sofá e isopor, e depois liga para a Comlurb, que passa para buscar o material.

- Já cheguei a encontrar um colchão novinho, ainda embalado no plástico, que deve ter caído de algum caminhão que passou pela Linha Vermelha - conta o pescador. - Ele estava praticamente seco. Levei para casa e durmo nele até hoje.

Durante 20 anos, Carlos viveu da pesca tradicional. Aprendeu com o pai, antigo pescador da Baía de Guanabara, que morreu quando ele ainda era adolescente. Nos tempos de fartura, conseguia ganhar mais de R$ 50 por dia, mas a poluição das águas fez os peixes desaparecerem.

O quilo das garrafas é vendido a R$ 0,55. Carlos espera juntar cerca de duas toneladas de plástico e chama o dono de um ferro-velho na comunidade onde mora, que manda um caminhão pegar o produto. Como não tem uma prensa, amassa as garrafas com o pé para que possam ser embaladas.

- Antes eu conseguia vender o quilo a R$ 0,85, mas como tem muita gente fazendo o trabalho de coleta, o preço da pet diminuiu muito - lamenta Carlos.

Com o dinheiro das garrafas, ajuda a mulher - que ganha R$ 400 como empregada doméstica - a sustentar os quatro filhos. Seu maior sonho é comprar um terreno em Imbariê, Duque de Caxias, e construir uma chácara para os momentos de lazer. Também gostaria que os filhos pudessem conhecer as águas da Baía de Guanabara tão limpas quanto na sua infância.

Quando retorna para casa, por volta das 20h, o sol já se pôs e as garrafas abarrotam o barco a ponto do pescador praticamente desaparecer no meio delas. Apesar das dificuldades, Carlos não é um nostálgico das pescarias convencionais. Forçado a se adaptar aos novos tempos, está feliz pescando garrafas.