Título: Debate deve opor visões de mundo
Autor: Rodrigo Vasconcelos
Fonte: Jornal do Brasil, 28/08/2005, Brasília, p. D1

Os pólos das batalhas na Câmara dos Deputados e no Senado Federal em torno da discussão sobre o projeto de lei que descriminaliza o aborto serão representados por fortes grupos organizados contra e a favor da interrupção da gravidez. Entre os contrários ao projeto, a Igreja Católica é o mais atuante e representativo. Segundo os dados do último censo populacional do IBGE, de 2000, quase 74% dos brasileiros são católicos.

- A posição da Igreja é sempre pela defesa da vida nascente. É certo que isso comporta situações difíceis e até dramáticas, como no caso de risco de morte para a mãe, ou no caso de gravidez decorrente de estupro. Mas as pessoas adultas que se encontram em situação de risco, ou atingidas por um drama, podem e devem ser ajudadas de maneira adequada, sem recorrer à solução radical de suprimir a vida de um ser humano indefeso e inocente, como é o feto ou o bebê. Ninguém deve tocar na vida do próximo - disse dom Odilo Scherer, secretário-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

Para Erli Helena Gonçalves, especialista em bioética e questões de gênero da UnB, a questão do aborto não pode ser vista pelos parlamentares através de uma ótica religiosa.

- Nosso país é uma república federativa laica, e não cristã. O Estado tem a obrigação de acolher as mulheres por meio de políticas públicas que prevejam o aborto como um direito, e não de fazer concessões ao credo deste ou daquele grupo religioso. Essa discussão já foi resolvida na maioria dos países desenvolvidos e aqui milhares de mulheres continuam a morrer todos os anos por complicações resultantes de abortos feitos em condições precárias de higiene - disse a pesquisadora.

Mas nem mesmo entre os católicos existe consenso. Segundo pesquisa do Ibope encomendada pela ONG Católicas pelo Direito de Decidir, 82% dos entrevistados são favoráveis ao aborto em caso de risco de morte da mulher. O índice cai para 80% nos casos em que o bebê corre riscos de nascer com problemas congênitos graves, e para 67% nos casos de estupro. A pesquisa ouviu 2002 pessoas em 143 municípios, entre 10 e 15 de fevereiro desse ano.

O índice de 82% a favor do aborto nos casos em que a mãe corre risco de morte reflete o elevado número de mortes de mulheres em decorrência de complicações de abortos feitos em clínicas clandestinas sem condições de higiene mínimas. O problema é ainda mais grave, porque não há estatísticas confiáveis sobre a dimensão do problema, já que a interrupção da gravidez é crime.

- O número chega a 1 milhão de abortos clandestinos por ano, a maioria sem qualquer assistência. No SUS, o aborto é a terceira causa de morte materna, só perde para hemorragia e eclampsia. As mulheres que morrem são as pobres, porque quem tem dinheiro recorre a clínicas de aborto com assepsia e profissionais qualificados - afirmou a deputada Jandira Feghali.

Mas para dom Odilo Scherer, não faz sentido legalizar o aborto sob o pretexto de reduzir as complicações de abortos clandestinos nem de salvar a vida das mães.

- A solução dos abortos mal-feitos em clínicas clandestinas não deve ser a legalização do aborto, mas o combate às clínicas clandestinas e uma intensa política preventiva contra os abortos clandestinos. Não se resolve o problema da criminalidade, legalizando o crime, mas combatendo-o e criando a cultura do respeito e da honestidade - disse Scherer, para quem o aborto não pode ser reduzido a uma questão pragmática de saúde pública. (RV)