Título: Guerra Fria, de volta à América do Sul?
Autor: Maria Regina Soares de Lima
Fonte: Jornal do Brasil, 29/08/2005, Internacional, p. A12

A visita recente do Secretário de Defesa dos Estados Unidos, Donald Rumsfeld, ao Paraguai e ao Peru fez renascer a analogia com os tempos da Guerra Fria. Segundo o New York Times, em artigo publicado em 19 de agosto com o sugestivo título ¿Like Old Times: US Warns Latin Americans Against Leftists¿ (¿Como nos velhos tempos: EUA alertam latino-americanos contra esquerdistas¿), o principal objetivo da viagem foi isolar Hugo Chávez na região, assinalando uma mudança das prioridades de segurança dos EUA na região. As importâncias anteriores ¿ ameaças terroristas, fronteiras porosas e narcotraficantes ¿, em alta em 2004, foram remanejadas pela nova preocupação com a desestabilização potencial da região representada pelo apoio do eixo Chávez-Fidel aos ¿movimentos esquerdistas¿ na região. Se descontarmos a imperiosa necessidade dos EUA de fabricarem inimigos, identificando-os claramente, para justificarem um aparato militar e de segurança de dimensões consideráveis, cabe a pergunta: por que mudaram estas prioridades?

Uma razão plausível aponta para os parcos rendimentos das tentativas anteriores de se estabelecer um vínculo concreto entre os grupos guerrilheiros e narcotraficantes e o principal objetivo estratégico dos EUA: a guerra contra o terrorismo e as armas de destruição em massa.

Por mais que se tenha desejado, a tríplice fronteira não se tornou o Afeganistão do Hemisfério Sul. A dupla Chávez-Fidel, ao contrário, parece ter bem mais possibilidade de sucesso como personagens principais das novas ameaças.

Em primeiro lugar, o petróleo venezuelano está trazendo ao palco um dos ícones da galeria dos ¿mais procurados¿, resquício da Guerra Fria e alvo da excitada comunidade cubano-americana cujos votos não são desprezíveis, particularmente diante das taxas de crescimento relativamente maiores das populações de origem hispânica nos EUA.

A riqueza petrolífera não apenas ressuscitou o velho líder cubano, como está permitindo a Chávez um protagonismo regional em uma escala não alcançável por qualquer outra liderança na região. Suas ofertas de cooperação incluem não apenas a satisfação das prementes necessidades energéticas de países sul-americanos, mas também daquelas de natureza social e cultural.

Ademais, nos últimos meses, aumentaram sensivelmente os episódios de instabilidade política, em especial nos países andinos, Bolívia, em 2003 e 2005, e Equador, também neste ano. Ao contrário do passado, porém, em que episódios envolvendo manifestações populares eram utilizados para justificar golpes militares e interrupções do Estado de Direito, os três últimos casos de revoltas populares terminaram de modo absolutamente legal, com a saída dos respectivos mandatários e a obediência aos ritos sucessórios previstos nos casos de vacância do poder executivo.

Também como uma novidade em relação ao passado, estes conflitos estão sendo protagonizados por movimentos indígenas e camponeses, refletindo a crescente mobilização destes segmentos nos países andinos, até então, praticamente excluídos de suas respectivas sociedades.

Velha talvez seja a reação americana que se recusa a ver nestas manifestações políticas um movimento de aprofundamento da democracia em sociedades estratificadas política, social, cultural e economicamente. Repetindo a leitura conservadora da Guerra Fria, os Estados Unidos têm reagido a esta mobilização política de forma previsível, condenado a transgressão à ordem democrática e à liberdade do mercado.

É aí que entra Chávez, acusado de fomentar e estimular a instabilidade nos países andinos e sua progressão inevitável em direção a regimes esquerdista-militaristas que, na perspectiva de Washington, são os inevitáveis hospedeiros de terroristas, traficantes e todos aqueles que militam contra as democracias de mercado.

A sugestão patética do pastor Pat Robertson, ex-pré-candidato presidencial republicano, de que sairia mais barato assassinar Chávez para se livrar de um destes ¿governantes canalhas¿, na terminologia do Departamento de Estado, é mais uma manifestação deste maniqueísmo que vai se firmando no governo Bush ao enquadrar com as lentes da Guerra Fria tudo o que se passa ao sul do Rio Grande.

A maior ameaça deste retorno ao passado não é uma provável intervenção dos EUA em algum país sul-americano. Por agora, com a explicitação do desastre que tem sido a intervenção dos EUA no Iraque e a crescente oposição doméstica à presença das tropas americanas no país, rotas intervencionistas estão temporariamente suspensas.

A principal ameaça às instituições políticas e à ainda incipiente democracia sul-americana reside em um eventual movimento das oposições políticas em países da América do Sul de inserirem, em suas equações golpistas, o apoio dos EUA. No período da Guerra Fria, ao contrário do que ocorreu na América Central e no Caribe, na América do Sul, os golpes militares tiveram sua origem nos grupos e forças políticas domésticas que sabiam que poderiam contar com o apoio incondicional dos EUA, na medida em que a interrupção da institucionalidade política se fazia em nome da preservação da democracia. Ainda que os Estados Unidos não precisassem intervir diretamente para restabelecer a ordem, a expectativa do apoio seguro funcionava como um poderoso indutor às forças conservadoras, contrárias às mudanças e à qualquer ameaça ao status quo na região.

Como um contraponto a este roteiro já conhecido e vivido em vários momentos no passado, é bom lembrar que os golpes só foram eficazes porque contaram com a força das armas. Uma rápida mirada pela história política recente do continente talvez nos sugira que se os EUA estão propensos a desempenhar o seu antigo papel, o mesmo não parece ocorrer com os militares sul-americanos.

Talvez por pertencerem a uma geração que não conheceu a face enlightened da hegemonia americana do imediato pós-Segunda Guerra, a geração que hoje está no poder tem sérias restrições à política de segurança regional dos EUA. Seria um ganho civilizacional se, no período pós-Guerra Fria, os militares sul-americanos tivessem ingressado no partido da ordem, democrática, mesmo que sua contraparte na América do Norte ainda insistisse em desempenhar seu anacrônico papel.

Nunca foram tão distintas as escolhas políticas ente o Norte e o resto do hemisfério. O regime Bush é contemporâneo aos governos progressistas da Argentina, Brasil, Chile, Uruguai e, muito possivelmente, México. Contudo, como se sabe, o passado nunca volta e nunca se pode retornar ao mesmo ponto de antes.