Título: Esgoto ameaça colônia de pescadores
Autor: Branca Nunes
Fonte: Jornal do Brasil, 29/08/2005, Rio, p. A14

As árvores deram lugar a um canal onde o esgoto passa a céu aberto. O cheiro do mar foi abafado pelo odor fétido dos detritos despejados por casas que não têm saneamento básico. A água limpa do rio foi invadida pela lama e, em vez de peixes, os pescadores se viram obrigados a pescar garrafas. Esta realidade foi a passos lentos tomando conta da colônia de pescadores da Vila do Sangue, localizada às margens do rio Itá, em Santa Cruz. As degradações se intensificaram nos últimos 25 anos, quando o curso do Itá foi modificado para a ampliação da Base Aérea de Santa Cruz. O rio, que corria livremente até a Baía de Sepetiba, foi desviado, formando uma curva que dificultou o fluxo da água. Com isso, o esgoto despejado in natura acaba empossado na colônia dos pescadores.

Além da extinção dos peixes, a quantidade de gigogas, espécie de planta que se prolifera em águas poluídas, impossibilita que os pescadores atravessem remando uma parte do rio Itá. O trajeto, que demorava 20 minutos, passou a ser feito em uma hora. Os homens são obrigados a descer dos barcos para soltar a hélice do motor que se prende no lixo e a arrastar as embarcações por boa parte do caminho por causa da lama.

Os olhos azuis de Hermes Bento de Souza, 55 anos, brilham ao relembrar os tempos de fartura. As marcas de mais de meio século trabalhando como pescador estão estampadas nas mãos grossas e no rosto queimado pelo sol.

- Quando eu era criança, colocávamos latinhas dentro d' água amarradas com barbante. Depois de algumas horas vínhamos pegá-las e cada uma tinha um peixe dentro. Era uma maravilha - conta o pescador.

Como fez a vida inteira, Hermes acorda na hora em que a maré enche - seja às 3h, 4h ou 6h da manhã. Na esperança de encontrar os peixes, leva a vara de pescar, as iscas, a rede e navega até a Baía de Sepetiba, onde costumava encontrar os cardumes mais fartos. Invariavelmente retorna de mãos vazias. Para garantir a sobrevivência, pesca as garrafas pet que encontra no caminho. Como publicou o Jornal do Brasil na edição de ontem, essa é a mesma realidade de tantos outros pescadores da Baía de Guanabara.

- Vendemos o quilo da pet a R$ 0,50. Dá para ganhar mais do que com a pescaria - garante Hermes: - Quem vive da pesca está tirando menos de R$ 10 por semana.

Dos mais de 70 pescadores que fazem parte da colônia da Vala do Sangue, praticamente nenhum continua vivendo exclusivamente da venda dos peixes. Quem não coleta as garrafas, acaba complementando o orçamento fazendo bicos como pedreiro, eletricista ou carpinteiro.

- É frustrante deixar de fazer aquilo que amamos, por causa do descaso dos órgãos públicos. As melhorias na Zona Oeste não chegam aqui. Os pobres estão abandonados - lamenta o presidente da Associação de Moradores da Comunidade do Matadouro, Cláudio da Silva Pereira, 43 anos. - Nós não temos um parque, um cinema, um teatro, uma área de lazer e agora estão matando o nosso rio.

Com a justificativa de facilitar a limpeza, a prefeitura desativou a manilha que levava o esgoto do antigo matadouro para o rio Itá. Em seu lugar foi construído um canal aberto, por onde passa boa parte do esgoto da região. Segundo Carlos, desde a inauguração, há um ano, a Rio Águas, companhia responsável pela limpeza do canal, não apareceu.

- Quando está calor, ninguém aguenta ficar aqui por causa do mau cheiro. Nós tentamos impedir que a obra fosse feita dessa forma. Agora, além de perdermos os peixes, estamos ganhando uma série de doenças de pele - conta Cláudio.

Com o barco transbordando de garrafas pet, outro pescador, conhecido como Zé Calango, 43 anos, enumera com orgulho os peixes que eram encontrados facilmente na região.

- Aqui tinha anchova, parati, pescadinha, cavala. Era tanto peixe que dava para pescar com a mão - diz Zé, com o olhar perdido no horizonte.