Título: Cobrando responsabilidades
Autor: Ramez Tebet
Fonte: Jornal do Brasil, 30/08/2005, Outras Opiniões, p. A11

A crise, que se torna cada vez mais aguda em decorrência da soma de novos episódios e denúncias, está a carecer do presidente da República atitudes mais enérgicas. Infelizmente, o pronunciamento de Lula à Nação não satisfez por completo à interrogação que se posta nos espaços institucionais: qual é a responsabilidade do presidente da República nos eventos escandalosos que atingem o partido do qual ainda é presidente de honra, o Partido dos Trabalhadores? O presidente tem o dever indeclinável de vir a público expressar de maneira clara as razões que motivam a indignação contra seu partido, nomeando os companheiros envolvidos nos escândalos, exigindo punições severas contra os responsáveis pelas ilicitudes, e, mais que isso, o expurgo daqueles que se jogaram no maior oceano de lama da nossa história política contemporânea. Se continuar a tergiversar, usando uma retórica frouxa e ineficaz, estará contribuindo para expandir as suspeitas que já se projeta sobre o seu nome.

O senado assistiu com muita atenção a peroração do senador José Sarney, que mostrou os contornos da crise. Levantou a necessidade de reformas urgentes, eximindo a figura do presidente de maiores responsabilidades e listou medidas para serem aplicadas. Concordamos com o ex-presidente Sarney quanto à origem da crise - o ethos do homo politicus. A crise não é das instituições políticas e sociais. Partilhamos da idéia de que o presidente Luis Inácio constitui o maior exemplo da dinâmica social brasileira, em toda a história da República, mas não aceitamos a versão de que ele não tem nada a ver com a situação de descalabro que atinge a esfera política, a partir do sistema de cooptação arquitetado pelo PT.

Uma coisa é enaltecer sua figura, expressar as origens humildes, percorrer a trilha de sacrifícios que deu contorno à sua vida. Outra coisa é deixar de reconhecer que a grave crise deixa de pesar sobre os ombros presidenciais. Lula e o PT estão umbilicalmente unidos pelo cordão genético que traça a configuração de suas vidas. Ambos são entes indissociáveis. Mexer com um é mexer com outro. Os dois se somam no delineamento de um projeto político de longo prazo. Se assim é, a retórica que defende a repartição de corpos xifópagos - Lula e o PT, o PT e Lula - não resiste à análise mais aguda.

A democracia representativa atravessa uma crise em todo o mundo, e suas origens apontam para o arrefecimento dos partidos, o declínio das ideologias,o enfraquecimento dos parlamentos, a pasteurização da vida política e criação de outras esferas de representação social, como as organizações não governamentais. Crise a que o filósofo Norberto Bobbio relacionava às promessas não cumpridas pela democracia representativa, entre as quais a educação para a cidadania, o combate ao poder invisível e a distribuição da justiça a todos os cidadãos. Se a crise é mundial, assume, entre nós, características peculiares, como o patrimonialismo, plantado após o Descobrimento, quando o país foi dividido em 15 capitanias hereditárias. Atravessamos cinco séculos de altos e baixos. Atravessamos os ciclos de chumbo das ditaduras, festejamos períodos da abertura das liberdades, vivenciamos instantes alternados de nuvens sombrias e horizontes abertos. Hoje, vê-se uma encruzilhada. Nossa democracia carece de aperfeiçoamento. Ainda se respira um ar de autoritarismo, bastando olhar para o presidencialismo imperial, que teima em querer legislar, sendo esse um dos veios da crise. Se as relações entre Executivo e Legislativo não são harmônicas e autônomas, é porque o presidencialismo brasileiro transforma o Parlamento em refém. Relações promíscuas passam, então, a se estabelecer, comprometendo o equilíbrio institucional.

Apesar do aparato de ilegalidade, a democracia brasileira não comporta atitudes populistas. Nosso temor é o de que o presidente Lula parta para a retaliação, escudado no forte carisma que detém. O confronto entre posições extremadas poderá acirrar os ânimos e contribuir para um desfecho terrível. Em face dessa moldura, só resta uma alternativa para que o presidente garanta a credibilidade: voz de autoridade, exigindo a punição rigorosa dos culpados, inclusive seus companheiros que macularam a história do PT. A classe política está na espreita. Se o presidente vacilar, o caminho do despenhadeiro não tem volta.