O Estado de São Paulo, n. 46643, 01/07/2021. Economia p.B1

 

Novo Bolsa Família pode liberar 30% do benefício para pagar crédito consignado

Adriana Fernandes

 

Com o objetivo declarado de promover a emancipação financeira e o empreendedorismo, o novo Bolsa Família pode gerar endividamento dos mais pobres. O governo quer permitir que até 30% do valor do benefício possa ser descontado na fonte para abater empréstimos consignados. A proposta consta em minuta da medida provisória – à qual o 'Estadão' teve acesso – que traz o desenho técnico da reformulação e da ampliação do programa pelo governo, com nome provisório de Renda Cidadã.

O Bolsa Família "turbinado", como os aliados no Congresso chamam o projeto, é considerado uma plataforma política para a busca da reeleição do presidente Jair Bolsonaro em 2022. O valor médio do benefício (fixado inicialmente em R$ 250) ainda depende de cálculos que estão sendo feitos depois que Bolsonaro pediu à equipe econômica que o elevasse para R$ 300 .

Pela proposta, o pagamento das parcelas do crédito concedido por bancos poderá ser descontado quando "expressamente autorizado pelo beneficiário até o limite de 30% do valor do benefício". Caberá ao Ministério da Cidadania definir as condições do crédito e critérios para a celebração dos acordos de cooperação técnica entre a Pasta e as instituições financeiras interessadas em ofertar o empréstimo. O tomador do dinheiro que perder a condição de beneficiário do Bolsa Família continuará responsável pela quitação do empréstimo ao banco.

A proposta já enfrenta críticas. "Não consigo entender de que forma um programa de transferência de renda possa ser uma porta para uma dívida", diz Rogério Barbosa, sociólogo e professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Pesquisador do tema, Barbosa destaca que as famílias mais pobres são justamente aquelas que têm maior dificuldade em arcar com quaisquer tipos de empréstimos. "Ainda que o pagamento seja consignado (ou seja, já descontado pelo banco no valor do benefício), isso significa uma subtração substantiva de um valor que já é baixo."

Barbosa alerta para o risco de o contemplado pelo programa ficar sem o benefício e ter de arcar com o empréstimo. Ele lembra que na história do programa Bolsa Família há casos de cancelamento massivo de beneficiários. Em 2017, ocorreu um desses episódios. Nos meses seguintes, houve uma concessão massiva de benefícios, mas que deixou de fora os excluídos. "Se isso acontece com empréstimo consignado, vai ter um problemão", alerta. Segundo ele, os beneficiários que contraírem o empréstimo podem ser excluídos, inclusive, por erros administrativos. "Como é que eles vão arcar com a dívida remanescente?", questiona.

O empréstimo consignado faz parte da estratégia do governo de dar uma porta de saída das pessoas do programa, uma "emancipação". O argumento é que o empréstimo pode permitir ao beneficiário comprar produtos que lhe permitam empreender para garantir um sustento, por meio do microcrédito.

Pelo texto da MP, a ideia é que o Ministério da Cidadania promova concorrência na oferta do crédito consignado aos beneficiários, permitindo liberdade de escolha entre o maior número possível de bancos. Mas é a Caixa Econômica Federal que sai na frente nessa corrida porque abriu as contas digitais para a concessão do auxílio emergencial concedido durante a pandemia. Serão exigidas condições mínimas de programa de educação financeira dos beneficiários que quiserem contratar o crédito.

A MP diz que os benefícios serão pagos mensalmente por instituição financeira autorizada. Mas dispensa de licitação os bancos públicos, como Caixa, Banco do Nordeste, Banco da Amazônia e Banco do Brasil. Os benefícios poderão ser pagos por meio de uma série de modalidades de contas, entre elas, a conta poupança social digital. Chama a atenção dos especialistas que a abertura da conta do tipo poupança social digital para os pagamentos dos benefícios poderá se dar de forma automática, em nome do responsável familiar inscrito no Cadastro Único. A MP garante que o banco que fizer a abertura de conta poupança social digital poderá usar essas informações para ações de inclusão financeira dos beneficiários do programa, entre elas o crédito consignado, "sem prejuízo das hipóteses de sigilo bancário"

 

Vale-creche. Conforme o texto, o programa vai permitir o pagamento de mensalidade em creches privadas particulares, comunitárias, confessionais, beneficentes ou filantrópicas regularmente instituídas. O vale-creche (auxílio criança cidadã) será pago diretamente às creches, que não precisarão comprovar regularidade fiscal para aderir à iniciativa.

Somente se não existirem vagas em creches públicas ou privadas, o recurso será repassado diretamente à família. É para crianças de seis até 47 meses (quase quatro anos) de idade cujo responsável comprove ou obtenha emprego formal. Esse benefício estará condicionado à disponibilidade de orçamento. Constatadas irregularidades que ocasionem o recebimento indevido do vale-creche, a instituição de ensino deve fazer o ressarcimento de valores, mas a família responderá "subsidiariamente" pela ocorrência.

 

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Governo vincula valor do programa à taxação de dividendos

 

Equipe econômica diz que recursos com mudança de tributação serão usados para ampliar o Bolsa Família

BRASÍLIA

A definição do valor médio do novo Bolsa Família dependerá dos rumos da reforma do Imposto de Renda no Congresso Nacional. O governo adotou como estratégia usar o ganho de arrecadação de medidas como a tributação de lucros e dividendos para servir de fonte de financiamento permanente para a ampliação do programa social.

Por isso, uma eventual redução na alíquota proposta, de 20% para 15% como querem empresários e congressistas, poderia afetar o valor médio a ser pago aos beneficiários, segundo fontes do governo ouvidas pelo Estadão/broadcast.

Vincular uma medida à outra foi uma “decisão de governo” diante da avaliação de que a reforma do IR precisa “ser impulsionada” para a aprovação. Embora algumas propostas sejam populares, como a correção da tabela do IRPF, há outras que ainda enfrentam resistências e podem esbarrar no lobby de empresas e categorias que hoje pagam menos imposto sob a “pejotização”.

O valor do novo programa, que será a marca social do governo Bolsonaro, será definido a partir da reforma no IR e da folga em 2022 no teto de gastos, a regra que limita o avanço das despesas à inflação.

O presidente Jair Bolsonaro chegou a anunciar que o novo Bolsa pagaria em média R$ 300, acima dos R$ 250 até então negociados dentro do governo. Depois, o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), filho do presidente, disse que o valor seria de R$ 270 em média – numa declaração que buscava “corrigir rota”, segundo fontes do governo.

O lançamento do novo Bolsa precisa ser feito ainda este ano para não esbarrar na lei eleitoral, que proíbe esse tipo de medida em ano de eleições, caso de 2022. Para isso, o governo tem de atender aos requisitos da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que exige compensação de receita permanente para fazer frente a gastos duradouros, como a nova política social.

O governo vinha trabalhando em um projeto de lei complementar para afastar esses dispositivos e criar uma exceção para o novo Bolsa Família. Mas a ideia de vincular as receitas de medidas como a tributação de lucros e dividendos prevaleceu.

Segundo uma fonte do governo, “como a reforma tributária precisa ser impulsionada, optou-se por essa forma”. Um integrante da equipe econômica diz que, como dinheiro não tem “carimbo”, a taxação de lucros e dividendos servirá para bancar a ampliação do Bolsa, enquanto a outra perna da reforma será compensada pelo aumento estrutural de arrecadação.

A estratégia é considerada arriscada pelas próprias equipes envolvidas nas discussões, uma vez que as mudanças feitas pelo Congresso podem limitar o programa. Outra fonte admite que um cenário de alterações sem um plano B poderia comprometer o alcance da nova política.

A equipe econômica aposta neste “dilema” para levar adiante a proposta de mudança no IR. A vinculação das duas medidas vai expor a escolha do Congresso: para reduzir a tributação de lucros e dividendos e atender ao pedido de empresas e categorias como advogados, médicos e outros profissionais que atuam como pessoa jurídica, os parlamentares colocariam sob risco um valor maior de benefício para a camada mais vulnerável da população.

A mesma lógica valeria para o fim dos juros sobre capital próprio, tributação sobre o fluxo dos fundos exclusivos de investimento e o fim da isenção para pessoas físicas que aplicam em fundos de investimentos imobiliários.