Título: A guerra não declarada do Rio
Autor: Carolina Benevides, Florença Mazza e Ana Paula Ve
Fonte: Jornal do Brasil, 01/09/2005, Rio, p. A13

Banalização do fuzil entre criminosos ameaça cotidiano do carioca

O drama da jornalista Nadja Haddad, da TV Bandeirantes, atingida por um tiro de fuzil em plena Rua São Clemente, em Botafogo, Zona Sul do Rio, expôs tragicamente a ferida: a guerra que mora logo ao lado está ficando cada vez mais perigosa para os civis. Médicos e especialistas comprovam que houve mudanças quantitativas e qualitativas nas baixas destas batalhas urbanas - além de mais feridos e mortos, ferimentos mais graves. A Lagoa Rodrigo de Freitas será palco de manifestação em outubro. No dia 21, 41 mil cruzes vão representar os 41 mil mortos no país por armas de fogo. O evento está sendo organizado pelo escritor e médico Luis Mir, autor do livro-calhamaço Guerra Civil, que denuncia a violência e suas conseqüencias para a saúde pública.

Dados da Unesco mostram que, no Rio de Janeiro existem 4,3 armas de fogo para cada 10 habitantes homens entre 15 e 65 anos. Desse total de armas, 17% circulam diariamente pela cidade.

Para Tito Rocha, chefe do setor de ortopedia do Hospital Municipal Souza Aguiar, a situação está em declínio visível:

-Nos últimos cinco anos percebemos uma piora significativa nas lesões por arma de fogo que chegam ao Souza Aguiar: são lesões mais graves, causadas por armas de guerra como fuzis e pistolas 9mm. Hoje, 90% dos baleados que chegam ao hospital são atingidos por fuzis. A liberação do uso destas armas de guerra pela polícia fez com que os traficantes também se armassem melhor - diz o médico, que ainda acrescenta:

- Nas lesões balísticas, quanto maior a energia que o projétil transfere para o corpo atingido, maior o estrago. No caso do fuzil, a energia cinética da bala é muito maior do que a de um revólver, já que o projétil tem uma velocidade inicial maior quando sai do cano da arma. Ao atingir o corpo, é como se ocorresse uma explosão, dilacerando os órgãos em frente à onda de choque - diz.

De acordo com os dados de Luis Mir, o Rio está sempre entre a quarta ou quinta cidade mais violenta do país e é a mais violenta na faixa de 15 a 24 anos. Mir faz uma comparação com as guerras e o que acontece no Brasil -- 56 mil soldados morreram na Guerra do Vietnã em 13 anos. Em um ano, no Brasil, 41 mil pessoas morreram.

Sobre o caso da jornalista Nadja Haddad, o escritor é taxativo:

- Bala perdida não existe. há a intenção de matar. A polícia entrar num morro atirando é inaceitável. Polícia e bandidos matam civis. A sociedade do Rio não merece viver no meio de uma batalha.

O presidente do Sindicato dos Médicos, Jorge Darze, há tempos denuncia a falta de estrutura para o atendimento aos feridos.

- O atendimento do Corpo de Bombeiros é exemplar, mas quando ele entra na ambulância, vive uma loteria, pode-se dizer que começa uma via-crúcis. Há um quadro de calamidade nos hospitais e algumas vezes os médicos precisam improvisar para atender quem chega ferido.

Darze denuncia que o local onde Nadja foi atingida - um bairro da Zona Sul - pode ter feito a diferença entre a vida e a morte.

- A repórter que foi baleada foi atendida no Hospital Miguel Couto, que passa por uma crise, mas não foi posta em risco. Se ela tivesse levado um tiro de fuzil e fosse receber tratamento num hospital da Zona Oeste, a situação poderia ser outra completamente diferente.