O Globo, n. 32778, 05/05/2023. Política, p. 4

A nova rachadinha

Chico Otavio


Em mais uma suspeita de apropriação dos salários de funcionários envolvendo a família do último ex-presidente da República, o chefe de gabinete do vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos), Jorge Luiz Fernandes, recebeu um total de R$ 2,014 milhões de outros seis servidores nomeados pelo filho de Jair Bolsonaro. Obtida pela 3ª Promotoria de Justiça de Investigação Penal Especializada, a movimentação financeira é a prova mais consistente na investigação sobre suspeita de um esquema conhecido como rachadinha que mira o filho “Zero Dois” do ex-titular do Palácio do Planalto. Há acusações de que a mesma prática ocorreria nos gabinetes de Jair Bolsonaro quando ele era deputado federal, e do agora senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), no período em que exercia mandato de deputado estadual.

O levantamento feito pelo Laboratório de Tecnologia de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro do MP-RJ, com autorização da Justiça, também demonstrou que Fernandes usou contas pessoais para pagar despesas de Carlos Bolsonaro. A 3ª Promotoria quer saber agora, em pedido de investigações complementares, se os pagamentos foram eventuais ou regulares. No caso da segunda situação, ficará provado que o vereador se beneficiou diretamente do desvio dos salários de seus servidores. O laudo já produzido é suficiente para imputar o crime de peculato —desvio ou apropriação de dinheiro, bens ou valores por funcionário público— a Jorge Luiz Fernandes.

Parceria de décadas

A relação entre vereador e chefe de gabinete extrapola os limites profissionais e já ultrapassa duas décadas. Visto por funcionários da Câmara como um segundo pai para Carlos, que frequenta sua casa, Fernandes, também conhecido como Jorge Sapão, trabalha no gabinete do parlamentar desde o primeiro mandato dele, em 2001.

A investigação sobre a prática de rachadinha foi iniciada com base em reportagem publicada pela revista Época em junho de 2019, revelando que sete parentes de Ana Cristina Valle, exmulher do ex-presidente e madrasta de Carlos, foram empregados no gabinete do vereador, mas não compareciam ao trabalho.

Os promotores apuram se os funcionários devolviam parte do seus salários ou o valor integral para o vereador, a chamada rachadinha. Quatro destes servidores, ouvidos pela Época, admitiram que não trabalhavam no gabinete de Carlos na Câmara do Rio, mesmo tendo sido nomeados e com os salários em dia.

Obtido pelo GLOBO, o laudo do MP-RJ constatou que, entre 2009 e 2018, Fernandes recebeu créditos dos seguintes funcionários: Juciara da Conceição Raimundo (R$ 647 mil, em 219 lançamentos), Andrea Crisando tina da Cruz Martins (R$ 101 mil, em 11 lançamentos), Regina Célia Sobral Fernandes (R$ 814 mil, 304 lançamentos), Alexander Florindo Batista Júnior (R$ 212 mil, em 53 lançamentos), Thiago Medeiros da Silva (R$ 52 mil, em 18 lançamentos) e Norma Rosa Fernandes Freitas (R$ 185 mil, em 83 lançamentos). No alvo do MP-RJ, Fernandes é casado com uma das depositantes, Regina Célia, e é cunhado de Carlos Alberto Sobral Franco, que foi lotado no gabinete de Jair Bolsonaro quando o ex-presidente era deputado federal.

Segundo a colunista Bela Megale, do GLOBO, já havia chegado ao ex-presidente e à cúpula do PL, seu partido, a informação de que “está se fechando o cerco” da investigação que o Ministério Público do Rio conduz sobre o vereador. Um eventual pedido de prisão de Carlos, inclusive, não é descartado por integrantes da sigla.

Bolsonaro vem confidencia o seu círculo mais próximo de aliados, ainda de acordo com a colunista, a preocupação com o tema. Segundo pessoas próximas ao ex-presidente, o fato de ele próprio ter sido alvo de buscas da Polícia Federal anteontem, devido a fraudes em seu cartão de vacinação, aumentou sua apreensão em relação ao filho.

O Laboratório de Lavagem do MP-RJ investigou um total de 27 pessoas e cinco empresas ligadas a Carlos Bolsonaro. Um dos principais alvos da investigação é Marta Valle — professora de educação infantil e cunhada de Ana Cristina Valle. Moradora de Juiz de Fora (MG), ela passou sete anos e quatro meses lotada no gabinete, entre novembro de 2001 e março de 2009. Procurada pela revista Época, Marta disse na ocasião que nunca trabalhou para Carlos:

— Não fui eu, não. A família de meu marido, que é Valle, que trabalhou.

O salário bruto de Marta era de R$ 9,6 mil. Com os auxílios, a remuneração chegava a R$ 17 mil. Segundo a Câmara de Vereadores, ela não teve crachá de assessora. De acordo com o laudo do MP-RJ, Marta sacou, entre junho de 2005 e março de 2009, um total de R$ 364 mil logo após receber seu salário.

A investigação criminal não é a única frente aberta no MP-RJ que mira Carlos. Na esfera cível, corre na 8ª Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva de Defesa da Cidadania da Capital um procedimento para apurar eventual improbidade administrativa pelos mesmos motivos.

“Lamentável vazamento”

Em nota oficial divulgada no Twitter de Carlos Bolsonaro, sua defesa afirmou que é preciso apurar se ocorreu “lamentável vazamento de possíveis documentos e informações” que estariam sob sigilo determinado pelo Poder Judiciário, “com o nítido intuito de promover ataques ao vereador”. Na tarde de ontem, Carlos compareceu à sessão da Câmara Municipal, mas não quis dar entrevista.

O vereador não é o primeiro alvo de investigação por rachadinha na família. O Ministério Público Federal apresentou, em 2022, ação de improbidade administrativa contra Jair Bolsonaro relativa a seus mandatos como deputado federal. Já seu irmão Flávio Bolsonaro (PL-RJ), hoje senador, foi alvo de investigação relativa ao período em que era deputado estadual, mas as provas foram anuladas pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). O MP-RJ recorreu.