O Estado de S. Paulo, n. 46638, 26/06/2021. Metrópole, p. A24
O tempo entre as doses
Fernando Reinach
Aos trancos e barrancos, a velocidade da vacinação no Brasil está aumentando. Os governos estão prometendo vacinar uma fração cada vez maior da população em prazos cada vez mais curtos. Essa é uma ótima notícia, mas infelizmente o foco tem sido ministrar a primeira dose e não completar a imunização com duas doses. A quantidade de pessoas vacinadas com uma dose já é quase três vezes maior que as vacinadas com duas e a diferença vem aumentando.
O aumento do tempo entre doses foi uma iniciativa do Reino Unido logo no início da vacinação. Mas por lá já perceberam que essa estratégia não é a mais adequada para lidar com as novas variantes, principalmente a Delta que surgiu na Índia. Vou tentar explicar as razões.
As vacinas funcionam porque forçam nosso sistema imune a entrar em contato com fragmentos do vírus incapazes de causar a doença. Após a injeção, nosso corpo produz uma resposta imune que combate rapidamente o vírus. Todas as vacinas disponíveis usam fragmentos do vírus original (e não de variantes) para induzir a resposta imune. As mais efetivas têm taxas de proteção que beiram 95% contra o vírus original. Acontece que o vírus está se modificando e as novas variantes estão ficando diferentes da linhagem original usada para produzir as vacinas. Nessas condições, a proteção que as vacinas fornecem contra as novas variantes depende de nossa resposta imune (induzida contra o vírus original) ser capaz de reconhecer essas variantes e combatê-las.
Quando os resultados dos estudos de fase 3 das primeiras vacinas indicaram que elas tinham eficácias muito altas após as duas doses, os ingleses decidiram que em vez de utilizar 3 a 4 semanas entre as doses, as vacinas de alta eficácia poderiam ser ministradas com uma maior separação entre as doses. A lógica era que uma dose ministrada em um número maior de pessoas seria mais eficiente no controle da pandemia que duas doses ministradas em um número menor de pessoas. Assim foi feito e inicialmente funcionou.
Com essa estratégia, o Reino Unido conseguiu rapidamente vacinar quase 60% da população com a primeira dose, atrasando a segunda. Mas logo surgiu a primeira variante, infecciosa e causadora de uma doença mais séria, e os cientistas ingleses perceberam o risco de adiar a proteção máxima obtida somente com as duas doses. Após um longo debate, mudaram a estratégia e começaram a acelerar a aplicação da segunda dose. Essa foi uma decisão correta, pois agora a variante Delta, da Índia, chegou ao Reino Unido e em poucas semanas se tornou responsável por 99% dos casos. Quando os cientistas estudaram a proteção oferecida pelas vacinas de alta eficácia contra a variante Delta, observaram que uma única dose produz uma proteção muito limitada contra essa variante e agora as duas doses são essenciais.
Essas descobertas demonstram que o vírus se altera rapidamente, as novas variantes se espalham rapidamente e as estratégias utilizadas com sucesso em um dado momento podem levar ao fracasso alguns meses depois. O que sabemos hoje é que duas doses das vacinas de alta eficácia como Astrazeneca, Pfizer e Moderna, são capazes de nos proteger de todas a variantes que já surgiram.
Por quanto tempo isso será verdade é uma incógnita.
No Brasil, como não somos capazes de monitorar as variantes que estão circulando, a estratégia de aumentar o tempo entre as doses é arriscada e pode retardar o controle da pandemia. É bom lembrar que o objetivo deve ser vacinar o mais rapidamente possível a população com duas doses, utilizando de preferência vacinas de alta eficácia. Como sempre o Brasil é lento, chega tarde à festa, e paga um preço por sua incompetência.
É Biólogo, Phd em Biologia Celular e Molecular pela Cornell University e autor de A Chegada do novo coronavírus no Brasil; Folha de Lótus, Escorregador de mosquito e A longa marcha dos grilos canibais