O Globo, n. 32777, 04/05/2023. Política, p. 4

Vacina fake

Daniel Gullino
Dimitrius Dantas
Eduardo Gonçalves
Mariana Muniz
Paolla Serra
Patrik Camporez
Reynaldo Turollo Jr.


A Polícia Federal expôs ontem os detalhes de uma nova frente de investigação contra o ex-presidente Jair Bolsonaro, agora também na mira por uma suposta fraude no cartão de vacinação para incluir dados de uma imunização contra a Covid-19 que não ocorreu. De acordo com a PF, o antigo mandatário tinha “plena ciência” do esquema, que beneficiaria também familiares e assessores, como o tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens preso ontem pelos agentes. O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, que autorizou a operação, afirmou no despacho que o inquérito mostra que o militar levou adiante a iniciativa com “no mínimo, conhecimento e aquiescência” de Bolsonaro.

O ex-presidente foi alvo de um mandado de busca e apreensão—ele relutou a fornecer a senha do celular. Também foi determinada a apreensão de seu passaporte, o que não ocorreu. Os agentes efetivaram seis prisões preventivas. Além de Cid, foram detidos o assessor Max Guilherme de Moura, que acompanhou Bolsonaro após o fim do mandato; os ex-auxiliares Sérgio Cordeiro e Luís Marcos dos Reis; o secretário municipal de Governo de Duque de Caxias, João Carlos de Sousa Brecha; e Ailton Gonçalves Barros, militar que concorreu a deputado estadual no Rio pelo PL em 2022.

Nos Estados Unidos, para onde Bolsonaro viajou no fim do ano passado, retornando em março, falsificar certificado de vacinação é crime e pode levar à cadeia. Segundo o site da Embaixada dos EUA no Brasil, quem usar documentos fraudulentos para ingressar em solo americano “não receberá o benefício imigratório” e “poderá enfrentar multas ou prisão”. O país exige o comprovante na entrada.

O esquema que pretendia incluir dados falsos nas carteiras de vacinação foi abrangente: houve tentativas em Cabeceiras, no interior de Goiás, e em Duque de Caixas, na Baixada Fluminense (mais detalhes nas páginas 8 e 9). O início remonta a 2021: em novembro daquele ano, mensagens mostram que Cid acionou um interlocutor para tentar fraudar um cartão de vacinação para a mulher, Gabriela Santiago —“Joga na minha conta”, escreveu. O contato no município goiano era um médico, mas as dificuldades de inserir no sistema do Ministério da Saúde um lote de vacinas destinado ao Rio em um documento emitido em Goiás estenderam os tentáculos da empreitada para o Rio, onde um vereador foi acionado para desatar o nó.

As vacinas que, na verdade, Bolsonaro não recebeu, foram criadas com datas de agosto e outubro de 2022, em dias em que a investigação aponta que o ex-presidente não esteve nos postos de saúde de Duque de Caxias. Em dezembro, às vésperas da viagem para a Flórida, os registros foram acrescentados, e os certificados digitais de vacinação, baixados. Os acessos ao aplicativo ConecteSUS ocorreram a partir de redes do Palácio do Planalto — em outro caso, o acesso foi feito por meio do celular de Cid.

Para a PF, o inquérito indica que Bolsonaro e o ex-ajudante de ordens tinham “plena ciência da inserção fraudulenta dos dados de vacinação”. O relatório acrescenta que a inserção tinha o objetivo de gerar “vantagem indevida” para o ex-presidente.

Para Moraes, os elementos mostram que Bolsonaro estava informado a respeito das tentativas fraudulentas.

“É plausível, lógica e robusta a linha investigativa sobre a possibilidade de o ex-presidente da República, de maneira velada e mediante inserção de dados falsos nos sistemas do SUS, buscar para si e para terceiros eventuais vantagens advindas da efetiva imunização”, apontou o ministro, que deu razão ao entendimento da PF e discordou do parecer da Procuradoria-Geral da República, que não viu indícios do envolvimento de Bolsonaro.

Frentes de investigação

Além do inquérito das milícias digitais, em que a operação foi decretada, Bolsonaro é alvo de outros procedimentos no STF e no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Um dos que mais preocupam a defesa do ex-presidente trata dos ataques golpistas de 8 de janeiro —na semana passada, ele disse que publicou por engano um vídeo com acusações sem provas ao Judiciário.

Na frente mais avançada, a Procuradoria-Geral Eleitoral já se manifestou a favor da inelegibilidade de Bolsonaro por oito anos em função de ataques às urnas e do uso do Estado para “benefício pessoal” na tentativa de reeleição. Há ainda apurações a respeito das joias milionárias presenteadas pela Arábia Saudita e por vazar um inquérito sigiloso sobre as urnas, entre outros temas.

Ontem, a PF incorporou à lista os crimes de inserção de dados falsos em sistema de informações; infração de medida sanitária preventiva; associação criminosa; falsidade ideológica; uso de documento falso e corrupção de menores —um dos cartões é o da filha de 12 anos de Bolsonaro.