O Estado de S. Paulo, n. 46641, 29/06/2021. Política, p. A6

Bolsonaro, o distraído

Eliane Cantanhêde


Quanto mais abre a boca, mais o presidente Jair Bolsonaro se enrola e mais vai aplainando o caminho para a volta do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao Palácio do Planalto. Já não há mais dúvida: Bolsonaro é o maior adversário dele mesmo e o principal cabo eleitoral de Lula em 2022. Quanto mais um cai, mais o outro se consolida.

A campanha de Bolsonaro foi a que captou antes e usou melhor o grande catalisador da eleição de 2018: qualquer coisa, menos o PT. Nada como um dia atrás do outro, ou de uma eleição atrás da outra, e agora foi a campanha de Lula que captou antes e pretende usar melhor o catalisador de 2022: qualquer coisa, menos Bolsonaro.

Ao abrir a boca ontem, o presidente produziu mais uma pérola: “Não tenho como saber o que acontece nos ministérios”. Em meio à pandemia, aos ataques e ao desprezo às vacinas, também admitiu, como quem não quer nada: “Eu nem sabia como é que estava a tratativa...” Ou seja, como estava a pressa e a pressão para comprar a preço de ouro a Covaxin, vacina indiana que não tinha autorização nem na Índia, quanto mais da Anvisa.

O presidente fala do jeito mais displicente sobre questões graves e complexas, como mortes, pandemia, economia, governo, China, Joe Biden, ambiente, índios, máscaras, vacinas, deixando a impressão de que, ou ele se finge de bobo, ou é bobo mesmo. E, definitivamente, governando é que ele não está.

Nenhum presidente é obrigado a saber tudo de todos os ministérios, mas como não saber nada do Ministério da Saúde durante uma pandemia que já matou mais de 510 mil brasileiros? E como não sabia das tratativas da Covaxin? Foi ele quem enviou mensagem para o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, em favor dessa vacina, depois de desdenhar de Pfizer e Coronavac!

Ok. Vamos dar a Bolsonaro o benefício da dúvida. Vai que ele falou a verdade e não sabia de nada mesmo, já que estava superocupado, andando de moto, atacando jornalistas e inaugurando pontezinhas no Norte e agênciazinhas da CEF no Sul. Mas e, depois, quando recebeu as informações e os documentos do deputado Luis Miranda e seu irmão Luis Ricardo, responsável pelas importações no Ministério da Saúde?

Foi no dia 20 de março, sábado. A partir daí, não há como dar benefício da dúvida, porque ninguém, por mais desmemoriado, tem o direito de esquecer uma denúncia envolvendo US$ 45 milhões. Ele sabia exatamente o que estava acontecendo no ministério, sabia exatamente das tratativas (ou mutretas) com a Covaxin e simplesmente lavou as mãos. Tem nome: prevaricação.

Toda a confusão imobilizou o presidente e o Centrão. Nem Bolsonaro sabe o que fazer com o seu líder Ricardo Barros, nem o Centrão de Barros sabe o que fazer com Bolsonaro. Luis Miranda está no comando da situação: ou gravou a conversa com o presidente, ou blefou ao jogar isso no ar. Alguém tem como desmenti-lo? E quem quer pagar para ver?

A situação vai se complicando, com a notícia-crime contra Bolsonaro no Supremo por prevaricação e com novas descobertas instigantes. A Precisa, que representa a Covaxin no Brasil e tem uma reputação “mais ou menos”, aumentou seus negócios com o governo em 6.000% na era Bolsonaro. E não era a única a ter privilégios e defensores poderosos.

A vacina Convidecia, da chinesa Cansino, passou pelo mesmo processo atípico, também não tinha autorização da Anvisa e pedia um preço ainda maior do que a Covaxin. Onde é a sede da representante dela no Brasil? Em Maringá (PR), cidade do líder do governo e ex-ministro da Saúde Ricardo Barros – o dos “rolos”. Deve ser tudo coincidência, como os bolsonaristas-mor Luciano Hang e Carlos Wizard serem próconvidencia desde criancinhas.

Comentarista da Rádio Eldorado, da Rádio Jornal (PE) e do telejornal Globonews Em Pauta