O Globo, n. 32744, 01/04/2023. Opinião, p. 3
Projeto para regular redes vai no caminho certo
Pablo Ortellado
O governo federal finalmente apresentou seu Projeto de Lei (PL) para regular as mídias sociais. Trata-se de um projeto mais amplo e mais robusto que o PL das Fake News que tramita na Câmara dos Deputados. Como qualquer PL, ele pode ser aprimorado, mas o ponto de partida que oferece é sólido. Não contém nenhuma excentricidade, nenhum traço autoritário e, em linhas gerais, segue o caminho seguro da Lei de Serviços Digitais europeia. Deverá ser apensado e fundido ao PL das Fake News e debatido pela sociedade e pelo Congresso nos próximos meses.
Plataformas de mídia social como Twitter ou Instagram moderam conteúdo — removem postagens — hoje com grande autonomia. Se, por acaso, algum conteúdo ilícito não for moderado, a responsabilidade será do usuário que postou, e não da plataforma (a não ser que um juiz determine a remoção, e a plataforma não obedeça). Esse regime de responsabilização foi concebido no passado para garantir o desenvolvimento de serviços digitais em que são os usuários que fazem os conteúdos, e as plataformas apenas os distribuem.
Esse regime sofre fortes críticas. Tem sido apontado como responsável pela proliferação de conteúdos ilegais e perigosos que desencorajam a vacinação, fomentam ataques à democracia ou violam os direitos humanos. Como a moderação é cara, e as empresas não têm obrigação de remover os conteúdos e não são responsabilizadas juridicamente se eles circularem, sua difusão saiu do controle.
No começo da semana, o STF fez uma audiência pública com especialistas e interessados e sinalizou que poderá considerar inconstitucional o regime de responsabilização vigente. A proposta do governo federal busca consertar esse problema criando um novo regime e um novo marco regulatório.
De acordo com ela, as plataformas grandes, com mais de 10 milhões de usuários, passariam a ser responsabilizadas civilmente pelos danos decorrentes de conteúdos que constituam crime ou incitação ao crime se não fizerem esforços para moderá-los. Sete tipos de conteúdo seriam considerados ilegais: crimes contra o Estado Democrático, terrorismo, racismo, violência de gênero, crimes contra a infância, crimes contra a saúde pública e indução à automutilação ou ao suicídio.
As plataformas passariam a ter um “dever de cuidado”, o dever de atuar para impedir ou mitigar a circulação desses conteúdos ilegais. Teriam de demonstrar a uma autoridade regulatória (a ser criada) que fazem esforços suficientes para impedir que eles circulem e, se sua ação for considerada insuficiente, poderiam sofrer sanções — da advertência a multas milionárias ou mesmo à proibição das atividades.
Esse modelo é conhecido como “autorregulação regulada”. É intermediário entre a autorregulação existente hoje, que em grande medida não funciona, e a regulação direta do poder público, que pode, com mão pesada, ferir a liberdade de expressão. Nesse modelo intermediário, as plataformas se autorregulam, fazendo o dia a dia da moderação, mas seguindo parâmetros definidos em lei, sob a fiscalização de uma autoridade independente. É o modelo que os países europeus estão adotando e parece conciliar agilidade, eficácia e controle público.
O projeto do governo também busca enfrentar um grande empecilho político para a tramitação da regulação das mídias sociais: a imunidade parlamentar. O deputado Arthur Lira (PP-AL) pôs entre suas promessas de campanha quando reeleito presidente da Câmara a introdução, na regulação das mídias sociais, de uma garantia da imunidade. A ideia é que postagens de deputados e senadores não possam ser moderadas pelas plataformas. A medida é completamente absurda porque alguns deputados são os mais importantes disseminadores de conteúdos nocivos. Dar imunidade aos políticos seria dar carta branca justamente a quem é mais perigoso.
O projeto do governo tenta resolver o impasse criando uma espécie de solução intermediária. Postagens de deputados e senadores (mas também de governadores, presidentes, ministros e deputados estaduais) poderiam ser moderadas pelas plataformas, mas elas jamais poderiam aplicar como sanção a exclusão das contas, mesmo se o político for um violador contumaz das regras. Não é uma solução boa, mas talvez seja aceitável diante da alternativa assustadora de dar um passe livre para Nikolas Ferreira ou André Janones.