Título: A degola do bode expiatório
Autor: Leonardo Boff
Fonte: Jornal do Brasil, 02/09/2005, Outras Opiniões, p. A11

A atual crise é mais política que moral. É crise de representatividade. O povo não se sente representado por aqueles que ele elegeu. A prova é que, além da corrupção, em dois anos, 210 deputados sobre 513 mudaram de partido. Previamente a tudo, importa reconhecer o caráter precário de nossa democracia. Ela ganha contornos de farsa pois não pode haver democracia digna deste nome na qual um terço da população é excluída e oito mil famílias controlam cerca de 700 bilhões de reais, aqueles conhecidos rentistas que financiam mensalmente o governo em troca de altíssimos juros. Se elencássemos os valores da democracia como são apregoados pela retória política - liberdade, igualdade, justiça social, participação, desenvolvimento social com distribuição de renda e seguridades do cidadão - a nossa seria a sua própria caricatura para não dizer a sua direta negação. Nem falemos dos políticos. Fale por mim, Pedro Demo, sociólogo de Brasília que eu retenho por uma das cabeças mais bem arrumadas deste país: ''A maioria é gente que se caracteriza por ganhar bem, trabalhar pouco, fazer negociatas, empregar parentes e apaniguados, enriquecer-se às custa dos cofres públicos e entrar no mercado por cima. Há exceções, mas que confirmam a regra. Não tem outra vocação senão permanecer no poder. Imoral é perder a eleição. Vale tudo'' (Introdução à sociologia, pág. 330). Descrição realista, não uma caricatura.

Esse ethos político é sistêmico e histórico. Muito antes do PT, foi praticado pelos partidos conservadores e liberais, pelo PSDB elitista, pelo oligárquico PFL pelo negocista PTB e outros. A investigação deixou claro que já em 1998 por ocasião da reeleição do candidato do PSDB a governador de Minas Gerais, o esquema de Marcos Valério já funcionava. Por ser sistêmico de nossa democracia de baixa intensidade e de misturança de interesses públicos com privados, o ''caixa dois'' contaminou praticamente todos os processos eleitorais.

Qual foi o erro da cúpula dirigente do PT? De não ter sido alternativa, de ter-se adaptado a estes hábitos antirepublicanos. Com indignação vemos os ''bandidos'' de ontem, com o dedo em riste, acusando o PT como se esta corrupção sistêmica tivesse começado com ele. Se houvesse uma investigação séria na perspectiva de uma profunda reforma política, dificilmente, partidos hoje ''puristas'' e figurões ''impolutos'' escapariam da execração. O problema dos dirigentes do PT foi seu amadorismo. Deixaram marcas e assim viraram bode expiatório sobre o qual todos hipocritamente jogam seus próprios pecados para se sentirem redimidos. Como o mostrou René Girard, o mais famoso estudioso mundial do assunto (Le bouc émissaire), isso somente ocorre se houver a degola da vítima. Na degola deve entrar o presidente senão a expiação coletiva não seria purgadora. Destarte, os ''donos do poder'' podem regressar livremente ao poder de Estado e continuar lá a farra dos privilégios estatuídos em direitos. Se isso ocorrer haverá uma profunda divisão na sociedade, pois milhões irão defender o mandato do presidente, tido como mandato popular, enquanto outros, em menor número, buscarão seu o impeachment.

Uma nação somente amadurece, ensinava Celso Furtado, quando passa por provas cruciais. Estamos passando por uma delas. Ou faremos as mudanças necessárias ou condenaremos nossa democracia a ser de baixíssima intensidade e antipopular. Chega de desperdício de oportunidades de mudar.