O Globo, n. 32746, 03/04/2023. Brasil, p. 8

Big brother escolar

Bruno Alfano
Elisa Martins


Plataformas de ensino online direcionadas a alunos brasileiros, incluindo duas criadas por secretarias estaduais de Educação, monitoraram e coletaram dados pessoais de crianças e adolescentes, afirma relatório da organização Human Rights Watch (HRW), divulgado hoje. Num momento em que se discute como e até onde pode ir o uso intensivo de tecnologia na educação, o estudo aponta que ao menos sete sites educacionais acompanharam os passos dos alunos para além das salas de aula.

O levantamento indica que crianças e adolescentes usuários desses sites foram monitorados dentro de salas de aula e também fora delas, enquanto navegavam na internet.

Cinco plataformas, destaca o HRW, adotaram técnicas de rastreamento particularmente intrusivas. Um desses mecanismos realiza a gravação da tela do usuário e permite que terceiros assistam e registrem o comportamento de uma pessoa nos sites. Isso inclui cliques do mouse e movimentos na página, o equivalente digital, afirma a pesquisadora Hye Jung Han, especialista em direitos das crianças e tecnologia da entidade, a registrar por vídeo cada vez que uma criança coça o nariz ou pega o lápis durante a aula.

Outra técnica permite que os sites capturem qualquer texto digitado pelos usuários, antes mesmo que eles cliquem em enviar.

— A coleta e o uso de dados de crianças para publicidade comportamental violam sua privacidade e colocam em risco outros direitos das crianças. Essas práticas também desempenham um papel enorme na formação das experiências online das crianças e adolescentes determinando o que elas veem num momento da vida delas em que suas opiniões e crenças correm alto risco de manipulação —alerta Hye Jung Han.

Os sites investigados pela HRW foram Estude em Casa (do governo de MG), Centro de Mídias da Educação de São Paulo (do governo de SP), Descomplica, Escola Mais, Explicaê, Mangahigh, Stoodi, Revisa Enem e DragonLearn.

Segundo Hye Jung Han, esses sites, com exceção do Revisa Enem, enviavam os dados das crianças e adolescentes para empresas especializadas em publicidade comportamental, o que significa a possibilidade de quem tenham analisado essas informações para prever o que eles podem fazer ou como podem ser influenciados. Os anunciantes podem usar essas informações para segmentálos com conteúdo personalizado e anúncios que passam a segui-los pela internet, de acordo com a pesquisadora. Após a investigação, o DragonLearn foi retirado do ar.

— A principal questão tem a ver com o respeito à privacidade da criança e com transformar essas informações em artigo comercial. Ou seja, esse lugar que era para ser seguro, de uma sala de aula, transforma a criança em mercadoria quando vende seus dados — afirmou Maria Mello, coordenadora do programa Criança e Consumo, do Instituto Alana.

Oferecidas gratuitamente durante a pandemia e amplamente divulgadas nas escolas pelas redes estaduais, as plataformas passaram a ser muito utilizadas pelos colégios e estimuladas junto aos alunos. Com isso, era impossível para muitas crianças evitarem o rastreamento já que eles funcionavam, muitas vezes, como a principal forma de aprendizado formal durante a crise sanitária de Covid-19. Nem as autoridades públicas nem as empresas, diz o relatório, foram suficientemente claros sobre as práticas de rastreamento.

— Eles seguiram os alunos pela internet mesmo fora das aulas e coletaram informações sobre o que faziam e onde iam online, em suas vidas privadas —detalha a pesquisadora da HRW.

A investigação de novembro de 2022 foi revisada em janeiro deste ano. Segundo Hye Jung Han, a instituição selecionou os dois estados mais populosos do Brasil, São Paulo e Minas Gerais, e fez análises técnicas sobre os produtos Edtech apoiados por eles. Para isso, foi utilizado um inspetor de privacidade —um programa de computador que descobre as tecnologias específicas do site de rastreamento do usuário e se há alguém coletando dados.

Plataformas negam

Segundo o estudo, todas as plataformas analisadas foram procuradas pela HRW. Os governos de SP e de MG responderam aos questionamentos. A Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais informou que o site Estude em Casa, desenvolvido por analistas e técnicos da pasta, “não utiliza e nem coleta dados de alunos, pois não exige nenhum tipo de login”. De acordo com os pesquisadores, em 24 de março deste ano, o rastreamento de anúncio foi retirado do site. A Secretaria da Educação de SP esclareceu que o aplicativo do Centro de Mídias possui tratamento de dados reduzido somente ao necessário para prover a finalidade educacional pretendia e garante a privacidade.

O Explicaê alegou que não rastreia menores de idade e que que não comercializa dados de terceiros. O site Revisa Enem respondeu que também não faz coleta de dados sensíveis dos estudantes que usam a plataforma, nem os repassa a terceiros, o que também aparece no relatório da HRW. O Stoodi e o Descomplica não responderam aos pedidos de esclarecimentos. O GLOBO não conseguiu contato com os representantes do Mangahigh, DragonLearn e do Estuda Mais.

O relatório recomenda que o Brasil revise a legislação de proteção de dados de crianças e adolescentes online, o que a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais não faz, segundo a pesquisadora do HRW.

— A autoridade de proteção de dados do Brasil deve exigir que essas empresas e governos estaduais excluam os dados das crianças coletados desde a pandemia e a lei deve proibir publicidade comportamental e o uso de técnicas de rastreamento intrusivas em crianças —defende.