Título: Para eles, pesadelo acabou
Autor: Juliana Valentim
Fonte: Jornal do Brasil, 05/09/2005, Internacional, p. A7

Dias e noites de fome, sede e calor insuportável marcaram a vida do economista José Cândido Sampaio de Lacerda Neto, de 26 anos, um dos brasileiros sobreviventes do furacão Katrina, que voltou ontem ao Brasil. ''Vi um senhor morto na calçada por falta de atendimento, uma coisa revoltante. Passei por outra pessoa de 80 anos que estava prestes a morrer e nenhuma ambulância foi ajudá-la. Havia muitos policiais inertes, que nada faziam para socorrer quem precisava de ajuda. Foi um festival de desorganização, planejamento e demora no socorro como eu nunca vi'', desabafou. Exausto, abatido e com barba por fazer após uma semana sem banho, José Cândido recebeu o abraço da família no Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro em sua volta ao Brasil. O dia também foi de reencontro para a família dos brasileiros Antônio e Ângela Medalha, que passaram por momentos de sufoco em Nova Orleans durante as férias. ''Vimos muita destruição e desespero naquela cidade alegre que acabávamos de conhecer. O furacão foi uma experiência de vida muito marcante, pois percebemos que não somos nada diante da natureza'', disse o engenheiro Antônio Medalha, de 58 anos.

Em viagem a trabalho, José Cândido queria aproveitar os dias de folga na cidade, diferentemente do casal Medalha, que fez uma visita de quatro dias. Apesar de saber que o furacão de categoria 1 havia passado por Miami, não havia informações de para onde ele rumaria. ''No sábado, quando voltei para o hotel em Nova Orleans, havia uma ordem de evacuação. Depois escutei a previsão de chegada do furacão categoria 5 para segunda de manhã. Fiquei sem saber para onde ir'', contou José Cândido.

Sem abrigo, o economista tentou buscar uma vaga em outro hotel. Foi quando veio a ordem de evacuação e a situação piorou. ''Tentei me comunicar com minha família no Rio até tarde na segunda-feira, sem conseguir. No dia seguinte, ficamos sem água, luz e telefone e a comida estava racionada. Até que na quarta, os abrigados começaram a sofrer pressão do hotel para sair'', lembra.

José Cândido conta que um de seus piores momentos foi a madrugada de quinta, por conta do calor de 40º. ''Estava muito úmido e suei demais, sem ter água para beber. Foi horrível'', diz. O mesmo relata o casal Medalha: ''Vimos pessoas guardando garrafões de água por medo de faltar. Achei um absurdo a falta de assistência do governo. Nunca poderíamos imaginar que o país mais rico do mundo permitisse isso'', indigna-se.

O economista José Cândido conta que, na quinta-feira, a polícia recomendou que o grupo em que estava atravessasse uma ponte em direção à cidade vizinha de Crescent City, que estava em melhores condições. ''Nosso grupo, com 500 pessoas, andou por cinco quilômetros com malas até a entrada da cidade, mas uma barreira policial não nos deixou passar. Houve pânico, escutamos disparos e uma pessoa ficou ferida'', afirma José Cândido.

O economista conta que viu muitas pessoas saqueando lojas de tênis e supermercados e muita destruição nas ruas de Nova Orleans. ''O medo estava no rosto das pessoas. Ouvi histórias de estupros e de gente brigando por comida no Superdome. A ordem era andar juntos para evitar isso. Vi muitos policiais ociosos também. Tinham seis caminhões do exército parados que poderiam nos tirar dali, afinal éramos turistas e não desabrigados'', relata.

Depois da tentativa frustrada, o brasileiro ficou acampado em um pântano com quatro mil pessoas perto do aeroporto da cidade. ''O lugar era imundo, mas havia água e comida. Tentamos recorrer à embaixada brasileira pelo celular, mas foi impossível pois todos estavam sem bateria. Depois veio a informação de que a Guarda Nacional não deixou o cônsul passar para nos tirar dali'', diz.

O final feliz veio na noite de sexta-feira, quando um ônibus conseguiu retirar 100 turistas do local e levá-los até a cidade de Baton Rouge. ''Lá tinha luz e telefone para marcarmos o vôo de volta, por Dallas. Foi a minha sorte'', relata José Cândido. Para o casal Medalha, o maior aborrecimento foi o atendimento da empresa aérea TAM, que quase os impediu de retornar ao Brasil. ''A situação era caótica e vimos a hora em que a cidade ia explodir. Mas nada foi pior do que a falta de compreensão e solidariedade conosco por parte da TAM. Se dependesse deles, ainda estaríamos lá'', afirma Antônio.