O Globo, n. 32748, 05/04/2023. Brasil, p. 11

Por 60 dias

Paula Ferreira
Bruno Alfano
Ludmilla de Lima


O ministro da Educação, Camilo Santana, confirmou ontem que o MEC publicará uma portaria para suspender o calendário da reforma do ensino médio, a maior transformação desta etapa escolar desde a década de 1970. Na prática isso interrompe um processo de mudanças previstas para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2024, mas não altera a rotina dos alunos que estão em sala de aula. A informação foi antecipada na segunda-feira pelo GLOBO.

— O novo ensino médio previa um novo Enem em 2024. Como há ainda processo de discussão, vamos suspender essa portaria para que, a partir da finalização da discussão, a gente possa tomar decisão sobre o ensino médio —disse Camilo, ao confirmar a medida.

A portaria vai alterar outra norma editada no governo Jair Bolsonaro, em 2021. A norma fixou os prazos para implementação do novo modelo, como o avanço para os alunos do 3º ano em 2024, assim como a realização do novo Enem e da escolha de materiais de ensino para os itinerários formativos pelo Programa Nacional de Livros Didáticos (PNLD).

A suspensão do calendário vai durar 60 dias, prazo que ainda resta para a consulta pública sobre o novo ensino médio, aberta em março. Caso a consulta pública seja prorrogada, o prazo da suspensão também será ampliado.

Enquanto o cronograma fica suspenso, o grupo criado pelo MEC para discutir a reforma vai elaborar suas contribuições. Entre os participantes, estão representantes das secretarias estaduais de Educação, que defendem o novo modelo. O ministro explicou que, como as escolas já iniciaram o ano letivo, na prática, aquelas que o implementaram prosseguem com os trabalhos normalmente.

— O que está suspensa é a portaria do cronograma de implementação do novo ensino médio, especificamente, mais o Enem. O que estamos suspendendo é qualquer avanço na implementação até que essa comissão avalie e defina, ouvindo a todos, quais serão as correções que faremos —afirmou o ministro.

Reunião com Lula

Camilo participou ontem de uma longa reunião com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sobre o tema. O presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), Heleno Araújo, que defende a revogação da reforma, também foi ao encontro. O ministro e alguns auxiliares explicaram ao presidente as críticas feitas à reforma e quais os argumentos usados por quem defende o novo modelo.

Segundo interlocutores, Camilo está desgastado junto a parte dos aliados de Lula que apoiam a revogação da reforma, devido ao que consideram demora em tomar uma decisão. Estudantes, professores e organizações do terceiro setor têm defendido que o modelo seja revisto. Parte deles defende a revogação imediata, e outra ala afirma que diversos ajustes podem ser feitos para transformar a reforma em um sucesso.

— O que queremos é um ensino médio que possa focar na flexibilização, um modelo que possa garantir profissionalização para o jovem. Que possa ter qualificação, que possa ser, no futuro, em tempo integral, como diz a lei. É nosso grande objetivo. A condução é que foi errada, e alguns elementos precisam ser corrigidos — afirmou o ministro, ao tratar ontem da portaria.

Camilo acrescentou que o ministério avaliou que não houve um diálogo aprofundado para a implementação da reforma e que o MEC foi omisso nas gestões anteriores, em relação a essa discussão. Em 2016, durante o governo Michel Temer, a mudança do ensino médio foi definida por medida provisória (que se tornou lei no ano seguinte). Por isso, o atual ministro avalia que o processo de implementação foi “atropelado” e que é preciso fortalecer o debate:

— O processo de implementação foi atropelado. Há uma reclamação muito forte por alguns setores. A decisão, até por conversa com o presidente, é de manter o diálogo, fortalecer a comissão e aprofundar o debate, incluindo o Congresso Nacional —afirmou.

Desde que veio a público a possibilidade de suspensão do calendário da reforma, Camilo tem sido alvo de pressão de secretários estaduais de Educação que apoiam a manutenção da reforma. O Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) chegou a divulgar uma nota oficial ontem para se manifestar contrariamente à suspensão. De acordo com o Consed, a medida poderia colocar em risco o Enem do ano que vem. Além disso, escolas alegam que estão sem rumo para preparar os alunos que estão no 2º ano do ensino médio para a prova no ano que vem.

Aula de brigadeiro

Aluno de uma escola piloto da rede estadual do Rio Grande do Sul, Kaick Pereira da Silva, de 18 anos, completou o terceiro ano, em 2022, com o novo modelo, antes de ele ser implementado para todos os estudantes do estado.

Em ano de Enem, Kaick teve aulas como de gestão comercial, em que precisava fazer brigadeiros para vender, e de comunicação e marketing, que incluía a criação de rótulos de produtos. O aprendizado, em tese, está de acordo com um dos objetivos do novo ensino médio, que é preparar os estudantes para o mercado de trabalho, não só para o ensino superior. Mas Kaick avalia que o tempo utilizado nestas disciplinas seria mais bem aproveitado se houvesse mais aulas de redação, Matemática, Química e Física. Para o estudante, isso o prejudicou na competição por uma vaga no ensino superior, que acabou não conseguindo.

— Fiz dois anos do ensino médio de forma remota (por causa da pandemia) — lembra o jovem de Caxias do Sul (RS), que quer fazer Educação Física ou Geografia — Quando cheguei ao 3º ano, o ensino passou a ser presencial. Mas estávamos totalmente atrasados nos conteúdos. A maneira como as matérias novas foram aplicadas atrapalhou ainda mais a aprendizagem. Não tínhamos a mínima noção do que era boa parte dos conteúdos de Matemática, Português, Geografia e História. Estou fazendo um cursinho pré-vestibular e aprendendo agora a fazer cálculos de matemática, resolver questões de química e física e a montar uma redação.