Título: Entrevista: Roberto Aguiar
Autor: Rodrigo Vasconcelos
Fonte: Jornal do Brasil, 05/07/2005, Brasília, p. D3

Em Brasília desde março de 1990, o paulista de São Vicente, Roberto Aguiar, só deixou desde então a capital federal por nove meses, quando assumiu a Secretaria de Segurança Pública (SSP) do Rio de Janeiro, entre abril e dezembro de 2002, a convite da então governadora Benedita da Silva (PT-RJ). No Distrito Federal, foi titular da mesma pasta de agosto de 1995 até o fim do mandato do ex-governador Cristovam Buarque (PT-DF), em dezembro de 1998. Ainda estudante do curso de Direito na PUC de São Paulo, começou a militar na Juventude Universitária Católica e, mais tarde, ingressou nos movimentos de ação popular de inspiração marxista-leninista. Não chegou a participar da fundação do Partido dos Trabalhadores, mas desde o início colaborou com o partido. ¿Estou prestes a ceder à tentação de me desfiliar¿, disse Aguiar, decepcionado com os rumos que o PT tomou. Autor de 43 livros nas áreas de Filosofia, Direito, Sociologia, Ciência Política e Segurança Pública, Roberto Aguiar é atualmente professor da UnB e do Uniceub. Na entrevista a seguir, Aguiar fala, a partir de sua experiência à frente da SSP do DF e do Rio de Janeiro, sobre as características comuns e divergentes da criminalidade nas duas unidades federativas, o alto nível de reincidência dos criminosos na prática de delitos (em entrevista ao JB, publicada na edição de 21 de agosto, o comandante-geral da Polícia Militar no DF, coronel Renato Azevedo, disse que, dos criminosos presos pela corporação, 80% são reincidentes) e sobre as possíveis soluções para o problema. - Quando o assunto é política de segurança pública, as opiniões se dividem entre a opção de aumentar o rigor das punições e a de tornar efetiva a ressocialização dos presos. Quem está correto?

- Nem o aumento da pena, nem a sua diminuição, vão resolver o problema da reincidência, que tem várias causas complexas. Uma delas é a não punição dos criminosos. Se analisarmos as estatísticas, veremos que somente cerca de 3% dos fatos registrados chegam à Justiça. Então, o problema é que nem o ordenamento jurídico existente é cumprido. Outro ponto é o atraso do legislador, que não enxerga novos tipos penais no processo de elaboração das leis, como são os casos dos crimes de colarinho branco, de lavagem de dinheiro, de tráfico de drogas, dos delitos eletrônicos, do seqüestro-relâmpago etc. É preciso tipificar o crime para punir o criminoso. Mas os legisladores não entendem as novas realidades e o resultado é que o nosso direito está voltado para o que já passou. E não é aumentando as penas que se resolve o problema. Essa é uma mentalidade atrasada sobre segurança pública, do século 19.

- Mas então por onde passam as soluções?

- O primeiro passo é transformar os presídios em escolas e centros de profissionalização real, como fizemos na Papuda, por exemplo. Na época em que fui secretário de Segurança, havia mais presos do que agentes inscritos no vestibular e mais ofertas de emprego para os presos do que o número total de internos nos presídios. E não se trata de fazer arremedos de salas de aula, mas de enfiar a escola como ela existe aqui fora, lá, dentro do presídio. Outra solução é aplicar penas alternativas, de serviços reais para a sociedade e não os simulacros que existem hoje. É preciso também parar de colocar presos que cometeram crimes de níveis de gravidade diferentes na mesma cela. É isso que transforma amadores em profissionais do crime. Mas nada disso adianta, se não mudarmos o modo de entender o sistema penitenciário, que deveria abrigar apenas os responsáveis por crimes graves que precisam ser afastados da sociedade. Fora isso, as penitenciárias têm de ser pequenas, e não verdadeiras cidades, como Bangu, Carandiru, onde a grande quantidade de presos cria um circuito criminoso. O controle sobre os presídios seria mais efetivo se fosse regional, porque quando o preso fica perto da sua cidade e recebe visitas da família, os problemas disciplinares são menos freqüentes. É importante também que a sociedade tenha uma atitude generosa, de acolher essas pessoas. Quando o ex-preso não é aceito pela sociedade, acaba delinqüindo de novo porque não consegue se reintegrar.

- Mas basta pensar políticas de ressocialização para diminuir a reincidência? O que dizer para o cidadão preso em casa aterrorizado pelo aumento da violência, que não suporta mais ser vítima e acha bem-feito quando um bandido é torturado ou morto nas cadeias?

- O problema da violência é sistêmico. A população não é educada para enxergar a origem e as características da violência. No governo Cristovam, por exemplo, nós atacamos o problema da violência por meio de campanhas educativas no trânsito e hoje quando alguém põe o pé na faixa de pedestre, os carros param. Como foi feito isso? A violência no trânsito era terrível naquela época. Na ponte Costa e Silva, em 1995, quando colocamos os primeiros pardais, a velocidade média dos automóveis que passavam por lá era de 180 km/h. A origem dessa violência era a falta de educação. E quem educou a população? A própria população. Brasília inteira foi mãe da campanha Paz no Trânsito. A política de segurança pública tem de ser multidisciplinar e envolver todas as instituições, a SSP, os fiscais de trânsito, a população, a imprensa, ONGs e sociedades de bairro. Foi o que fizemos no programa Paz Nas escolas. Para inibir o índice elevado de violência nos colégios, não bastava colocar detectores de metais nas entradas, foi preciso mudar a concepção dos alunos, professores e diretores. Até a PM foi educada dentro desse processo. Não são mais homens, mais armas e mais viaturas que resolverão o problema da violência. Isso não resolve nada. É uma questão educacional, de inteligência, estratégica e tática.

- O problema então é de inteligência policial?

- No Brasil, a polícia não aprende estratégia e tática. O que acontecia quando a polícia entrava, por exemplo, no Morro dos Macacos, no Rio de Janeiro? Entrava alucinadamente, e o resultado era a morte de policiais e de inocentes, porque 99,9% dos moradores dali são trabalhadores. Para evitar isso é preciso fazer um serviço cirúrgico, o que requer inteligência. Quando fui secretário de Segurança no Rio, nós tínhamos dirigíveis, que dividiam a cidade em quadrantes. Era possível vigiar todo o Rio de Janeiro. Os dirigíveis tinham câmeras que escaneavam distâncias de 15 a 18 km, equipados com visão noturna. Quando nós fomos inaugurar o serviço, a governadora Benedita da Silva estava presente à solenidade com uma bolsa com fecho muito bonito. A câmera, a 3.600 pés de altura, focalizou o fecho da bolsa com perfeição. Dá para pegar o brilho dos olhos de uma pessoa a 15 km de distância. A vantagem disso é não usar agentes nem de mais, nem de menos. Quando um bando de criminosos desciam o morro, os policiais já saiam da delegacia sabendo quantos eram, se estavam armados, em automóveis ou a pé. Isso é inteligência: diminuir a necessidade de uso de violência e deslocamentos inadequados de policiais. O sistema de escuta de bandidos era outra ação estratégica sofisticada, feita sempre com autorização judicial. Foi com inteligência e estratégia que prendemos o Elias Maluco (Elias Pereira da Silva, traficante preso em 19 de setembro de 2002, acusado pelo assassinato do jornalista Tim Lopes). A primeira alternativa que tivemos para prendê-lo foi numa festa de criança. Todo o aparato policial estava preparado, mas quando vimos aquele monte de crianças, fomos embora. A segunda vez, havia um monte de gente, um rolo. Mas na terceira, nós o pegamos quando ele estava saindo do banho. É inteligência que nós dá a possibilidade de fazer esse tipo de ação cirúrgica. Não é deixar de subir o morro, mas fazê-lo sem matar inocentes.

- Mas inteligência não significa apenas mais e melhores equipamentos. O policial é um ator importante nesse processo. Ele está preparado para agir de maneira precisa?

- Quando fui secretário no governo Benedita da Silva, treinamos, entre abril e dezembro de 2002, cerca de 24 mil dos 37.500 policiais militares e civis que o Rio de Janeiro tinha na época. Mas treinamento só não basta. É preciso adequar as estruturas policiais em termos legais. No Brasil, a maioria dos regulamentos disciplinares das polícias são oriundos do tempo de Dom João 6º, quando a estética era mais importante que a ética. Se o policial chegar com o coturno sujo, reclusão por cinco dias. Cabelo desgrenhado, 10 dias. Mas se matar, não acontece nada. É preciso também que os acusados internamente tenham possibilidade de se defender. Isso mudou no DF, começamos a mudar no Rio, mas o casal Garotinho acabou com tudo que fizemos em questão de semanas. Os policiais têm direito a regulamentos disciplinares mais justos. Se queremos que os policiais respeitem os direitos humanos, é preciso respeitar os direitos humanos dos policiais, a defesa e a integridade deles. Como eles vão defender os direitos humanos, se nem sabem o que é isso? Não resolver essa questão é correr o risco de deixar uma porta aberta para a violência policial.

- Quais as principais diferenças e semelhanças entre os problemas de segurança pública do Rio de Janeiro e do Distrito Federal?

- No Rio, o crime é explícito, todo mundo vê. Até na alta sociedade, tem gente que acha bonito se relacionar com criminoso. Já os grandes crimes aqui tomam caminhos subterrâneos que apontam para autoridades e altos funcionários públicos. No DF, a criminalidade apresenta também características específicas em cada uma das regiões administrativas, ou seja, o crime é fragmentado. No Rio de Janeiro, apesar das 680 favelas que existiam quando eu deixei a SSP, todas apresentavam as mesmas características: pobreza radical associada ao domínio de facções criminosas com o discurso poético de que o traficante protege o povo. Em comum no DF e no Rio, a ignorância de certas elites que pensam que pobre é quem comete crime. Na época em que se começou a construção do metrô em Brasília, certas pessoas tinham medo de que houvesse uma invasão do pessoal das satélites para roubar no Plano e fugir pelo metrô. Eu respondi que tinha medo do inverso: o pessoal do Plano Piloto sair daqui para ensinar técnicas mais sofisticadas de crime ao pessoal das satélites. Se compararmos o montante do dinheiro recebido por qualquer um dos deputados acusados na CPI do Mensalão com o que roubaram todos os internos da Papuda, cada deputado será equivalente a 20 Papudas, no mínimo.

- O crime que mais preocupa o brasiliense é o seqüestro-relâmpago. A média no DF é de um por dia. Os cariocas também enfrentam esse problema? Há alguma forma de combate a esse crime que tenha surtido efeito no Rio e sirva de exemplo para o DF?

- No Rio de Janeiro, o seqüestro-relâmpago não é tão freqüente. Mas se o seqüestro-relâmpago se mantém em níveis elevados, é porque não está sendo combatido racionalmente. Então, vai ser repetitivo mesmo. É preciso pensar uma estratégia específica para lidar com o problema, que passa por mais inteligência policial aliada a campanhas educativas para a população. Segurança pública não é apenas o trabalho de combate posterior, mas principalmente de prevenção contra o crime. No tempo em que fui secretário de Segurança no DF, havia uma série de furtos no interior de veículos perto do Congresso Nacional. Uma comissão policial foi lá estudar a área para entender o que estava acontecendo. Nós chegamos a recolher entre 20 e 30 chaves por dia. O sujeito saía e simplesmente esquecia a chave dentro do carro. Fizemos uma campanha para as pessoas fecharem o carro e não deixarem as chaves e o número de furtos despencou. Houve um tempo em que havia muitos crimes contra homossexuais. Fizemos cartilhas para homossexuais ensinando a evitar a violência e o número de ocorrências desse tipo também caiu. O mesmo vale para a questão do seqüestro-relâmpago. O Distrito Federal é uma das maiores concentrações de caixas eletrônicos, o que favorece esse tipo de crime, que é um delito relativamente fácil. A evolução tecnológica é grande, mas para o consumidor não há tanta proteção, porque perder R$ 5 mil não é nada para os bancos, está no seguro e uma vida não interessa muito para eles. Os bancos deveriam ser obrigados a fazer a segurança desse sistema. Eles estão ganhando muito dinheiro, por que então é o Estado que tem de tomar conta do caixa eletrônico de cada agência? O número elevado de seqüestros-relâmpago é apenas o resultado de uma situação em que tanto os serviços públicos quanto os privados não olham para o cidadão. Então, quem olha?