O Globo, n. 32749, 06/04/2023. Política, p. 4

Versão do momento

Eduardo Gonçalves
Gabriel Sabóia
Paolla Serra


Em aproximadamente três horas de depoimento à Polícia Federal, o ex-presidente Jair Bolsonaro admitiu ontem que tentou reaver um conjunto de joias apreendido pela Receita Federal, avaliado em R$ 16,5 milhões, sob o pretexto de evitar um “vexame diplomático”, já que se tratava de um presente dado por autoridades da Arábia Saudita. Ele afirmou ainda que incumbiu o seu ajudante de ordens e homem de confiança, tenente-coronel Mauro Cid, de verificar o que poderia ser feito com os bens que haviam sido retidos. Desde que o caso veio à tona, o extitular do Palácio do Planalto tem apresentado versões distintas sobre o episódio.

As joias em questão —colar, anel, relógio e um par de brincos de diamantes — foram trazidas ao país em outubro de 2021 pelo então ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque. Ele representou Bolsonaro na viagem à Arábia Saudita. Os itens, que estavam com um assessor do ministro, foram retidos pelo Fisco no Aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, pois não haviam sido declarados à Receita, como determina a lei.

A partir de então, diferentes servidores da Presidência da República tentaram conseguir a liberação do material, sem sucesso. Enquanto Bolsonaro prestava depoimento em Brasília, o seu ex-ajudante de ordens era ouvido pela PF em São Paulo. No fim do ano passado, Mauro Cid chegou a enviar um ofício ao secretário da Receita Federal, pedindo “autorização para retirada” das “joias apreendidas”.

Explicações distintas

À PF, Bolsonaro disse que as tentativas de recuperar as joias foram feitas por meio de ofícios, o que demonstraria que ele não pretendia ocultar suas intenções. Ele afirmou ainda que só foi informado sobre os presentes um ano depois da viagem de Albuquerque e disse também não se lembrar quem o avisou de que os itens haviam sido apreendidos. Como O GLOBO revelou, antes mesmo de ouvir o ex-presidente, a PF já considerava ter “indício concretos” de que ele havia entrado em ação para ter acesso aos bens retidos em Guarulhos.

O ex-presidente chegou às 14h à sede da PF, em Brasília, onde permaneceu até as 17h36min. Ele entrou e saiu de carro, diretamente pela garagem, sem dar declarações à imprensa. A PF preparou um forte esquema de segurança para colher o depoimento. Havia uma expectativa de que apoiadores do ex-presidente comparecessem em peso ao local, o que não aconteceu. Mesmo assim, o prédio foi isolado e cercado por mais de cem homens da Polícia Militar do Distrito Federal, que destacou três ônibus e três viaturas da Tropa de Choque para ficar de prontidão no local.

No primeiro momento, assim que o caso das joias foi revelado pelo jornal O Estado de S.Paulo, Bolsonaro se disse injustiçado. Numa entrevista à CNN, no início de março, afirmou que estava sendo acusado de “(receber) um presente que eu não pedi, nem recebi”. Já no final do mês, ao se manifestar sobre o mesmo episódio, ele admitiu que o material seria dado à sua mulher, Michelle Bolsonaro.

—Tentamos recuperar o outro conjunto da Michelle via ofício, não foi na mão grande. Não sei porque essa onda toda —disse à Jovem Pan.

Além do que ficou em posse dos auditores da Receita, um outro estojo com joias foi trazido ao Brasil pelo próprio Bento Albuquerque.

Ele manteve o material guardado no cofre do ministério por pouco mais de um ano, até entregá-lo à Presidência da República. Nesse caso, Bolsonaro incorporou o material ao seu acervo pessoal.

Decisão do TCU

Na semana passada, O Estado de S.Paulo revelou que o ex-presidente também havia se apossado de um terceiro conjunto de joias. Trata-se de um relógio da marca Rolex, de ouro branco, cravejado de diamantes, ofertado pelos sauditas a Bolsonaro durante uma viagem oficial a Doha, no Catar, e a Riade, na Arábia Saudita, entre os dias 28 e 30 de outubro de 2019.

Esses presentes, além de armas que Jair Bolsonaro também ganhou enquanto era presidente, já foram devolvidas ao acervo da Presidência da República por determinação do Tribunal de Contas da União (TCU). A decisão foi tomada por unanimidade no mês passado. Na ocasião, os ministros deixaram claro que dois aspectos determinam quais itens podem ficar com o ocupante do Palácio do Planalto quando ele deixa o governo: os de “uso personalíssimo e baixo valor monetário”.

— Como uma camisa de time, um perfume, um lenço — exemplificou à época o presidente da Corte, Bruno Dantas em seu voto. — (Esses bens) preenchem, portanto, esses dois requisitos e podem ser atribuídos ao acervo particular do ocupante da Presidência. Se o bem é de elevado valor, ou não é personalíssimo, o destino deve ser o acervo da Presidência.