O Globo, n. 32749, 06/04/2023. Brasil, p. 8

Crueldade na creche



Mais um ataque brutal em uma escola, desta vez em Blumenau (SC), abalou o país. Por volta das 9h de ontem, quatro crianças entre 4 e 7 anos foram mortas, de forma aleatória, por um homem de 25 anos que pulou o muro da Creche Cantinho do Bom Pastor armado com uma machadinha e uma faca. Outras cinco crianças foram feridas.

Alunos do pré-escolar da unidade particular faziam uma roda de conversa no parquinho no momento da invasão. Uma das crianças feridas, com um corte no pescoço, passou por cirurgia e precisou de transfusão de sangue. Outras três, também internadas no Hospital Santo Antônio, na cidade, foram sedadas pela equipe médica, por estarem em estado de choque. O assassino, logo após o crime, seguiu de moto até o 10º Batalhão da Polícia Militar, a dois quilômetros da creche, e se entregou.

O homem deixou a escola pela porta ao ver professoras tentando proteger os alunos. Na unidade, uma professora se trancou com uma turma de bebês num banheiro. O ataque foi nove dias depois de um estudante de 13 anos da Escola Estadual Thomazia Montoro, em São Paulo, matar uma professora de 71 anos a facadas e ferir outras quatro pessoas. No Brasil, o fenômeno, semelhante ao que ocorre nos Estados Unidos, preocupa as autoridades.

Investigação digital

O responsável pelo atentado responderá por quatro homicídios triplamente qualificados e por quatro tentativas de homicídios triplamente qualificados. O delegado-geral da Polícia Civil de Santa Catarina, Ulisses Gabriel, afirmou que uma equipe que trabalha com crimes digitais foi enviada a Blumenau para extrair informações de telefones e computadores do preso. O homem tinha sete passagens pela polícia, por crimes como lesões corporais, brigas e posse de cocaína. Os registros são de 2016, 2021 e 2022. Uma das vítimas foi o padrasto do acusado, que foi esfaqueado, mas não morreu. Ele ainda esfaqueou, em outra ocasião, o cachorro do padrasto.

— Estamos deslocando a equipe da Divisão de Repressão a Crimes de Informática, que faz extração de informações de telefones e computadores, para verificar como que ele orquestrou esse plano e se teve estimulo de alguém, se tem participação de mais uma pessoa —disse o delegado-geral, ressalvando que a entrevista prévia feita com o criminoso indica que o ataque pode ter sido um fato isolado. —Não é um fato coordenado por jogo, rede social.

O Ministério Público de Santa Catarina acompanhará a investigação. O governador Jorginho Mello (PL), que divulgou mensagem prestando solidariedade às famílias das vítimas, destacou que todas as crianças mortas eram filhas únicas.

Enzo Marchesin Barbosa, morto aos 4 anos, chamava a atenção pelo jeito risonho e por gostar de dançar. O menino foi adotado em dezembro de 2021 por duas mães, Samira Barbosa e Carina Marchesin. Em dezembro do ano passado, Samira publicou fotos em comemoração ao sonho realizado um ano antes. “Um ano de muitas risadas, preocupações quando ficava doente, um ano de muitos beijos e abraços”, escreveu a enfermeira, que também postava sobre o quanto o filho a ajudou no tratamento de um câncer.

O pai do menino Bernardo Cunha Machado, de 5 anos, também morto, contou emocionado que, quando deixou o filho na escolinha, ele estava alegre e brincava no pátio.

— Hoje, quando chegou na creche, ele estava brincando, imitando um coelhinho — disse o pai, que pediu justiça, e não a morte do assassino.

As outras crianças mortas são Bernardo Pabest da Cunha, de 4 anos, e Larissa Maia Toldo, de 7 anos. As crianças feridas devem ter alta hoje, segundo a viceprefeita de Blumenau, Maria Regina Soar. O velório das vítimas estava previsto para começar na noite de ontem em Blumenau.

Testemunhas do horror

Logo após o crime, pais de alunos, avisados pela direção da unidade, eram vistos chegando em desespero e correndo do local com os filhos no colo. A escolinha divulgou um comunicado lamentando o ataque: “Estamos desolados com a tragédia ocorrida no dia de hoje no nosso ambiente escolar, sofrendo terrivelmente e sentindo as dores que afeta cada criança, familiar e amigo. Ainda estamos tentando entender o ocorrido, que atinge o que nos é mais sagrado: a integridade das nossas crianças”.

O horror no pátio da creche foi testemunhado por coleguinhas das crianças assassinadas e feridas, que estão em choque. O instalador de vidros Henrique Araújo, de 31 anos, tem um casal de filhos na unidade. A menina, de 5 anos, viu tudo.

— Ela me contou que estava no parquinho brincando quando viu o agressor pular o muro com um capacete rosa, uma machadinha e uma faca. Minha filha viu quando ele atacou um coleguinha com a machadinha. Está em estado de choque e só chora — conta Araújo, que afirmou “estar sem chão”. —A minha filha está bem fisicamente, graças a Deus. Mas, emocionalmente, está destruída. Como eu vou tirar isso da cabeça da minha filha?

A professora Simone Aparecida Camargo atuou rapidamente para proteger as crianças do berçário:

— Minha parceira de sala chegou correndo dizendo “fecha a porta, fecha a janela, porque um cara assaltou o posto”. Pensamos que era um assalto porque ele invadiu a escola. Fechei os bebês no banheiro e depois vieram na porta dizendo que ele “veio matando”, que ele foi no parque para matar. No parquinho, a turma do pré estava toda fazendo uma roda de conversa. Ele tinha mais de uma arma —relatou a professora à NSC TV.

Na noite de ontem, moradores de Blumenau eram vistos fazendo uma vigília na porta da creche. O governo de Santa Catarina cancelou as aulas nas escolas da cidade por dois dias (ontem e hoje) e decretou luto de três dias. Outras cidades do estado, como Indaial, Timbó, Rodeio, Balneário Camboriú, Penha, Tijucas, Palhoça, Garopaba e Itajaí também suspenderam o funcionamento das suas redes.

A Cantinho Bom Pastor vai do berçário à pré-escola. De acordo com o prefeito de Blumenau, Mário Hildebrandt, a unidade particular possui boa equipe de professores e boa estrutura.

“Inaceitável”, diz Lula

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) lamentou a tragédia, que chamou de “inaceitável”, nas redes sociais. “Não há dor maior que a de uma família que perde seus filhos ou netos, ainda mais em um ato de violência contra crianças inocentes e indefesas. Meus sentimentos e preces para as famílias das vítimas e comunidade de Blumenau diante da monstruosidade ocorrida na Creche Bom Pastor.”

O episódio teve repercussão internacional. O jornal francês Le Monde relembrou dois ataques recentes em escolas do Brasil — em Aracruz, no Espírito Santo, em novembro do ano passado, e o da Escola Thomazia Montoro. O espanhol El País destacou que Blumenau está “abalada” em decorrência de “um massacre brutal”. Na Inglaterra, o The Guardian afirmou que “ataques a escolas no Brasil têm acontecido com maior frequência nos últimos anos”.

Participaram da cobertura: Liliani Bento (de Blumenau), Alfredo Mergulhão, Arthur Leal, Elaine Neves, Julio Cesar Lyra, Letícia Messias, Luis Felipe Azevedo, Luciano Ferreira, Pâmela Dias, Paulo Assad, Rayane Rocha e Ricardo Pinheiro.