O Estado de S. Paulo, n. 46644, 02/07/2021. Notas & Informações, p. A3

Um TCU perplexo



Por unanimidade, o Tribunal de Contas da União (TCU) aprovou as contas do governo de Jair Bolsonaro relativas ao exercício de 2020. A rigor, as contas deveriam ter sido reprovadas. Há evidências de que o presidente da República e alguns de seus auxiliares diretos fizeram mau uso de recursos do Orçamento da União para, artificialmente, construir uma base de apoio no Congresso com o objetivo de garantir a Bolsonaro alguma sustentação política. O cambalacho, revelado pelo Estado no início de maio, ficou conhecido como "orçamento secreto".

Assenhoreando-se de R$ 3 bilhões do Orçamento da União, o Palácio do Planalto elaborou uma espécie de "orçamento" particular e distribuiu o butim a algumas dezenas de deputados e senadores para que estes financiassem projetos de seu interesse, sem equidade entre parlamentares da base ou da oposição ou "procedimentos sistematizados para o monitoramento e avaliação dos critérios de distribuição", como concluíram os auditores do TCU. A distribuição de vultosos recursos públicos aos "amigos do rei" chegou a ser negociada até por mensagens de WhatsApp, fora de qualquer controle republicano.

Em que pese o fato de as contas terem sido aprovadas, o julgamento do TCU representou uma grande derrota política para o governo. Isto porque a Bolsonaro interessava negar a existência do tal "orçamento secreto", e a Corte de Contas não apenas reconheceu a prática – classificada como inconstitucional por seus auditores –, como se mostrou "perplexa" diante das evidências. "A inovação legislativa (distribuição orientada dos recursos por meio das emendas do relator-geral do Orçamento, RP-9) trouxe perplexidade e dificuldades em sua operação", disse em seu voto o ministro relator, Walton Alencar.

Nos últimos dias, o governo vinha atuando fortemente para que não só suas contas fossem aprovadas pelo TCU, como também para que nenhuma ressalva fosse feita pela Corte de Contas, o que, na visão palaciana, sepultaria a "narrativa" sobre a existência do "orçamento secreto". Não foi por acaso, aliás, que Bolsonaro despachou os ministros Luiz Eduardo Ramos, da Casa Civil, Paulo Guedes, da Economia, Wagner do Rosário, da Controladoria-Geral da União (CGU), e André Mendonça, da Advocacia-Geral da União (AGU), para acompanhar presencialmente o julgamento, no dia 30 passado. Uma inequívoca forma de pressão sobre os ministros do TCU.

O esforço foi em vão. O TCU deixou claro que o "orçamento secreto" ainda será objeto de futuros julgamentos. Ainda tramitam na Corte de Contas nada menos do que seis processos que tratam das irregularidades na distribuição das emendas RP-9. A própria "perplexidade" do ministro relator, expressa em seu voto, indica que o assunto segue muito vivo. "Diferentemente do que ocorre com as emendas individuais, que dispõem sobre procedimentos padronizados, verificou-se não haver uniformização de procedimentos para distribuição de recursos advindos das emendas RP-9", disse Walton Alencar.

Em seu relatório, acolhido por todos os pares, o ministro Alencar fez 28 ressalvas às contas do governo Bolsonaro. O relator salientou que 2020 foi "um ano excepcional" para a execução do Orçamento da União em decorrência dos desafios administrativos impostos pela pandemia de covid-19, mas não deixou de apontar 2 "irregularidades", 3 "impropriedades" e 23 "distorções", que, embora em sua visão não comprometam a aprovação das contas relativas ao exercício passado pelo Congresso, não deixarão de passar pelo crivo do TCU nos próximos julgamentos. A impressão que ficou é que a Corte de Contas precisará de mais tempo para analisar todas as implicações do chamado "orçamento secreto". A revelação do escândalo pelo Estado ocorreu apenas dois meses antes do julgamento das contas do governo neste ano.

O TCU é um órgão auxiliar do Legislativo, ao qual, por imperativo constitucional, cabe aprovar ou rejeitar as contas do Executivo. Dentro de dias, portanto, o Congresso também terá oportunidade de mostrar sua "perplexidade" diante do "orçamento secreto" de que parte de seus membros se beneficiou.