Título: O socorro, enfim, chega
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 03/09/2005, Internacional, p. A8

Um comboio atravessou as ruas inundadas de Nova Orleans ontem, levando comida pronta para consumo, água e remédios para as milhares de pessoas isoladas no Ernest N. Morial Convention Center. Aos gritos, a multidão literalmente atacou os suprimentos. O general Russel Honore, comandante do destacamento de mil homens da Guarda Nacional na área, reconheceu a dificuldade da tarefa:

- Se você tem 20 mil pessoas convidadas para ceia, sabe do que estou falando - comparou. - Se fosse fácil, já teríamos distribuído a comida antes.

Ao mesmo tempo, a Guarda Nacional tenta retirar os desabrigados do Centro de Convenção, assim como estão fazendo com o estádio Superdome. Os mais fracos e doentes são evacuados primeiro.

- Meu Deus, obrigada por estar me tirando daqui - chorava, de alegria, no Ernest M. Morial, Leschia Radford.

A felicidade da chegada da comida, entretanto, se misturava à revolta da demora da ajuda.

- Eles tinham que ter chegado há dias. Não estou feliz em vê-los - disse Michael Levy. Atrás dele, a multidão gritava ''É isso mesmo''. - Estamos dormindo no chão, como ratos.

- Não estou bravo. Isso é uma coisa que acontece. Fico feliz em ver ajuda - ponderou Bruce Gordon, um idoso de 79 anos com diagnóstico de artrite, que por quatro dias não comeu nada além de batata frita.

Do lado de fora do Centro, gangues armadas ameaçavam com armas os homens da Guarda Nacional. Honore passou por um caminhão de reservistas que apontavam rifles.

- Ele gritou: ''Abaixem essas armas. Isso aqui não é o Iraque'' - contou uma repórter da CNN.

Mais à frente, o chefe da polícia de Nova Orleans, Eddie Compass, foi tratado como herói ao anunciar, num megafone, que o pior passaria.

- Tiramos 30 mil pessoas do Superdome e vamos cuidar de vocês também. Comida e água estão a caminho. Assistência médica também está vindo. Vamos resgatar todos - prometia.

O estádio, enorme e destruído, entretanto, ainda era palco de sofrimento.

- Quero sair daqui. Mas preciso de remédio porque não consigo nem me levantar neste momento - disse no Superdome a diabética Lethornia Whiticar, mostrando os pés inchados.

Muitos protestaram pela lentidão do governo federal em responder à crise.

- Fomos deixados aqui para morrer - afirmou Tony Hatcher, de 48 anos, mostrando uma mulher com uma ferida meio aberta na perna esquerda e um garoto com um problema de pele nos braços. Nenhum dos dois havia recebido qualquer atendimento médico.

Moradores em choque tropeçavam nos corpos em decomposição espalhados pela cidade. Alguns tentavam caminhar pelas ruas inundadas e cheias de detritos rumo ao estádio, onde esperavam ser levados, de ônibus, para um lugar seguro. E mesmo os que saíam, corriam riscos: um desses veículos capotou no fim do dia, matando um dos passageiros. Alguns refugiados acusaram as autoridades de separar as pessoas em duas filas, uma com homens e outra com mulheres e crianças, dividindo as famílias.

- Se o senhor tem de me arrastar, então o senhor terá de me arrastar. Já perdi tudo o que tenho. Não vou perder meus filhos - gritou Albert Sumlin, que se recusou a entrar no ônibus até que reencontrasse a mulher e os filhos.

Até amanhã, o contingente de 7 mil reservistas da Guarda Nacional em Nova Orleans estará completo.

- Estas tropas sabem atirar para matar e espero que sejam duros com quem atentar contra a ordem pública - afirmou a governadora de Lousiana, Kathleen Blanco.

Mas parece pouco para tranquilizar a população. Saques, tiroteios e incêndios se tornaram comuns. Ontem, antes do amanhecer, a sensação de vulnerabilidade foi elevada pela explosão de um depósito de produtos químicos, que levantou uma coluna de fumaça cinza ácida no ar, já empesteado com o cheiro dos corpos em decomposição. Um segundo grande incêndio atingiu um antigo prédio de comércio em uma área seca da Canal Street, no centro. Não há notícias de feridos.