Título: Doutor Arraes
Autor: Agaciel da Silva Maia*
Fonte: Jornal do Brasil, 03/09/2005, Outras Opiniões, p. A11
Em 88 anos de vida Miguel Arraes deixa atrás de si um uma biografia impecável: esteve sempre ao lado dos fracos e oprimidos, defendeu os interesses dos trabalhadores, foi exilado e anistiado, governou o estado de Pernambuco três vezes (1962, 86, 94) e na Câmara dos Deputados deixou sua marca, a marca da coerência e da altivez nordestina. Mais do que ninguém, Arraes personificou, na medida, a célebre sentença de Euclides da Cunha quando afirmava que ''o nordestino é, antes de tudo, um forte.''
Na política brasileira foi um militante destemido sempre defendendo um nacionalismo são e sem tréguas. De certa forma com sua morte sai de cena um dos últimos e mais queridos líderes populares que este país produziu em 116 anos de vida republicana, estando ladeado por figuras de não menor estatura política como Tancredo Neves, Leonel Brizola, Luís Carlos Prestes e Ulysses Guimarães.
Em 1947 Miguel Arraes iniciou a carreira política como secretário da Fazenda de Pernambuco e nos seguintes 58 anos viveu a política intensamente, falecendo no exercício de seu segundo mandato como Deputado Federal. Coincidência ou não, foram 58 anos de lutas políticas e seus 58 últimos dias lutando pela vida na UTI do Hospital Esperança, no Recife. Considerado um companheiro leal até pelos adversários políticos, foi também um porto seguro para as populações carentes do Nordeste e por isso veio a ser, sem dúvida, uma das maiores lideranças das lutas populares que marcaram a segunda metade do século 20 no Brasil.
Arraes foi um dos primeiros a ser punidos pelo regime de exceção instaurado no Brasil em 31 de março de 1964. Já no dia 1º de abril daquele sombrio ano, governando Pernambuco, Arraes foi deposto pelo militares, saindo do Palácio do Governo, no Recife, direto para a prisão. A deposição foi um espetáculo cinematográfico pelo ostensivo poderio bélico em volta do Palácio do Governo. Os militares buscaram inutilmente que o governador renunciasse. Arraes desobedeceu, afirmando que a renúncia seria uma traição ao povo que o elegera, proferindo então sua famosa frase: ''Prefiro ir pra cadeia a trair o povo''. O resultado não foi outro e ali mesmo recebeu voz de prisão, sendo cassados todos os seus direitos políticos. Após um forçado exílio na Argélia, o povo pernambucano só o reencontraria 14 anos depois, quando anistiado, regressou em 1979 ao Recife e discursou em um comício no largo de Santo Amaro ao qual compareceram 60 mil pessoas.
Muito poderia se escrever sobre o legado humanista e político do líder pernambucano. Mas sinto ser oportuno destacar um dos seus últimos pronunciamentos na Câmara dos Deputados. Ele fazia um apelo apaixonado para que o governo cumprisse com a promessa de construir a rodovia Transnordestina. Bom esgrimista na lide política, não se absteve de listar inúmeros argumentos favoráveis ao projeto, destacando que a Transnordestina somente seria útil se antes fosse refeita a malha ferroviária do Nordeste, pois do contrário, seria apenas um trecho de estrada ligando o nada a coisa alguma. Não deixou de se indignar ante a constatação de que segundo ''levantamento feito pelos transportadores, das dez piores estradas do Brasil, nove estão no Nordeste.'' E foi além, afirmando que o trecho entre Pernambuco e Alagoas estava paralisado, destruídos os trechos pelas chuvas e cortando a ligação do Nordeste com o Sul.
Miguel Arraes ganhou a batalha da vida porque não quis ser diferente de si mesmo. E continuará vivo nas páginas de nossa história, porque segundo a lição de Jean Cocteau, o verdadeiro túmulo dos mortos é o coração dos vivos.
*Agaciel da Silva Maia é diretor-geral do Senado..