O Estado de S. Paulo, n. 46645, 03/07/2021. Política, p. A4

Rosa autoriza inquérito para investigar Bolsonaro

Pepita Ortega
Rayssa Motta
Weslley Galzo
Daniel Weterman
Matheus Lara
Marcelo de Moraes


A ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, acatou ontem à noite pedido da Procuradoria-geral da República e autorizou a abertura de inquérito contra o presidente Jair Bolsonaro para apurar suspeita de prevaricação no caso da negociação da vacina indiana Covaxin. A manifestação havia sido encaminhada horas antes à Corte, após a ministra, relatora do caso, negar o pedido da Procuradoria para segurar o andamento de notícia-crime relacionada ao caso até o fim dos trabalhos da CPI da Covid.

“Estando a pretensão investigativa lastreada em indícios, ainda que mínimos, a hipótese criminal deve ser posta à prova”, escreveu Rosa na decisão. As suspeitas envolvendo o contrato de compra da vacina indiana já são alvo de investigação na comissão parlamentar de inquérito no Senado. A notícia-crime que motivou o parecer da PGR foi protocolada no Supremo pelos senadores Randolfe Rodrigues (Rede-ap), Fabiano Contarato (Rede-es) e Jorge Kajuru (Podemos-go), na segunda-feira passada.

Os parlamentares argumentam que Bolsonaro cometeu crime de prevaricação ao não determinar a abertura de investigação sobre a compra da Covaxin após ser informado sobre supostas ilegalidades nessa aquisição pelo deputado federal Luis Miranda (DEM-DF) e seu irmão, Luis Ricardo Miranda, servidor de carreira no Ministério da Saúde. Segundo afirmou o deputado em depoimento à CPI, ao ouvir o relato, o presidente citou o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (Progressistas-PR), como o parlamentar que queria fazer “rolo” no Ministério da Saúde, e disse que acionaria “o DG”, em referência ao Diretor-geral da corporação. A PF afirmou na semana passada, no entanto, que não havia investigação aberta sobre o caso.

O crime de prevaricação é descrito no Código Penal como “retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal”. Para o relator da CPI, senador Renan Calheiros (MDB-AL), o inquérito da PGR aberto contra Bolsonaro por prevaricação é o resultado concreto do trabalho da comissão. “Esse é o menor dos crimes”, disse.

Em parecer, o vice-procurador-geral da República, Humberto Jacques de Medeiros, indicou algumas diligências a serem realizadas no âmbito da investigação, entre elas a solicitação de informações à Controladoriageral da União, ao Tribunal de Contas da União, à Procuradoria da República no Distrito Federal, e à CPI da Covid sobre procedimentos relativos aos mesmos fatos, com o respectivo compartilhamento de provas.

Mas, embora tenha pedido a apuração, Medeiros apontou “ausência de indícios” e disse que é preciso esclarecer as providências adotadas pelo governo. Na versão apresentada pelo ministro da Secretaria-geral da Presidência, Onyx Lorenzoni, Bolsonaro, após ser informado das supostas irregularidades, pediu ao então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, que apurasse as negociações da vacina Covaxin. Em manifestação encaminhada à PGR, Pazuello disse que a pasta abriu investigação interna, mas não encontrou irregularidades.

Depoimento. Medeiros indicou ainda que pretende ouvir “os supostos autores do fato”. O prazo inicial estabelecido para a conclusão da primeira etapa das apurações, que inclui os interrogatórios, é de 90 dias. O inquérito, no entanto, pode esbarrar na falta de definição sobre a modalidade de depoimento do presidente da República.

Um impasse sobre o depoimento de Bolsonaro já travou outro inquérito no Supremo: o que apura se o presidente tentou interferir politicamente na Polícia Federal para blindar familiares e aliados de investigações, como sugeriu o ex-ministro da Justiça Sérgio Moro ao deixar do governo.

A apuração, que completou um ano em abril, está parada na PGR aguardando o Supremo decidir sobre como deve ocorrer o interrogatório – se presencial ou por escrito. A oitiva é a última pendência do caso. O tema está previsto para ser julgado do STF em setembro, quase um ano após ter sido pautado pela primeira vez no plenário.

Uma vez instaurado o inquérito, se as investigações concluírem pela responsabilização de Bolsonaro, o presidente poderá ser denunciado. Uma ação penal, contudo, só poderia ser aberta após aval do Congresso. Neste caso, uma vez que a acusação formal é acolhida, o presidente é afastado do cargo.

Uma avaliação interna no Supremo, porém, é de que por ser um crime de baixo potencial ofensivo, com penas leves, dificilmente o inquérito resulte em uma denúncia. Mesmo que a investigação conclua que Bolsonaro prevaricou ao não comunicar a Polícia Federal após ser informado de suspeitas no Ministério da Saúde, o mais provável é que seja proposto a ele um acordo de não persecução penal – neste caso, ele teria que aceitar algumas condições para que o processo seja encerrado.

O acordo é uma novidade jurídica no Brasil, introduzido ao Código Penal de Processo Penal em 2019, com a aprovação da Lei Anticrime, de autoria do então ministro Sérgio Moro.

Na avaliação da constitucionalista Vera Chemim, a possível comprovação do ilícito por parte do presidente configuraria crime de responsabilidade. “A pena prevista pelo cometimento do crime de prevaricação não se aplica, a princípio, para o presidente da República, porque o mesmo ato ilícito remete a um crime de responsabilidade, em razão da natureza da sua função pública e portanto, as sanções a serem aplicadas ao presidente, na hipótese de ele vir a julgamento e ser condenado, são de caráter político-administrativas: perda da função pública, suspensão dos direitos políticos, ressarcimento do dano (se for o caso), inelegibilidade temporária.”