O Estado de São Paulo, n. 46657, 15/07/2021. Política p.A10

 

Preço da Covaxin tem guerra de versões

Vinícius Valfré

Júlia Affonso

Em depoimento à CPI da Covid, ontem, a diretora da Precisa Medicamentos, Emanuela Medrades, classificou como "mentiroso" um documento que o Ministério da Saúde enviou como resposta oficial à Câmara dos Deputados no qual consta uma oferta de preço da vacina Covaxin, em 20 de novembro, a US$ 10 a dose. Na sua versão, esse valor foi apresentado apenas como "expectativa".

O documento foi revelado pelo Estadão, em 3 de julho. O contrato para a importação dos imunizantes produzidos pelo laboratório indiano Bharat Biotech foi fechado, em 25 de fevereiro, por US$ 15 a dose. A elevação do preço, o maior pago pelo governo brasileiro por uma vacina, é investigada pela CPI.

Primeiro, a diretora foi taxativa. Em resposta ao relator da CPI, senador Renan Calheiros (MDB-AL), ela afirmou que o documento é "mentiroso". "A memória da reunião é mentirosa. É isso?", perguntou Renan. "Sim, senador, é mentirosa."

Em seguida, após o vice-presidente da comissão, senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), ler todo o documento, a diretora fez um reparo à declaração. Disse que os US$ 10 foram apresentados como "expectativa". "Foi apresentado como uma expectativa, e não como uma proposta, não como oferta."

Procurado várias vezes pelo Estadão, o Ministério da Saúde não se manifestou sobre o porquê de ter fechado o contrato com valor 50% maior do que o colocado no relatório da reunião de novembro.

Emanuela Medrades confirmou a veracidade das informações no documento. Fez apenas duas ressalvas. Além do preço, disse que havia uma incorreção quanto à característica da vacina. Segundo ela, não é correta a menção de que a Covaxin seria em "pó liofilizado". O imunizante seria uma solução injetável pronta para aplicação.

O valor de US$ 15 por dose da Covaxin é 1.000% mais alto do que a Bharat estimou em agosto de 2020 – seis meses antes de o contrato com o Ministério da Saúde ser assinado.

Telegrama da embaixada brasileira na Índia registrou que, em um evento naquele país, a Bharat informou que o preço por dose da vacina, quando estivesse pronta, poderia ser de 100 rúpias (US$ 1,34, na cotação da época). A informação também foi antecipada pelo Estadão.

Este valor, no entanto, não chegou a ser oferecido ao governo brasileiro. Em abril deste ano, após ter fechado contrato com o País, a empresa divulgou uma tabela de preços com valores mais altos para exportação do que para o mercado interno.

À CPI, Emanuela confirmou que o presidente da Bharat, Krishna Ella, disse na época que "a Covaxin custaria menos do que uma garrafa de água". Segundo ela, o valor de agosto de 2020 nunca foi ofertado e, na ocasião, "o produto não tinha sido precificado nem para a Índia nem para nenhum outro lugar".

No Ministério da Saúde, as principais negociações para a compra da Covaxin foram lideradas pelo ex-secretário executivo da pasta Elcio Franco. Número 2 da gestão de Eduardo Pazuello, ele participou da reunião de 20 de novembro.

Coronel do Exército, Franco se tornou um dos principais alvos da CPI. Os senadores apuram se ele e os demais integrantes da pasta agiram para favorecer a Precisa, intermediária da compra da Covaxin, em detrimento de ofertas feitas diretamente por grandes farmacêuticas, como a Pfizer.

Por decisão dele mesmo, desde 29 de janeiro todas as tratativas relacionadas à vacina contra a covid-19 foram centralizadas na secretaria executiva, como antecipou o Estadão.

 

Aumento. Em 6 de março – nove dias após o fechamento do contrato para entrega de 20 milhões de doses da Covaxin – Franco pediu a compra de mais 50 milhões de unidades. Ele também ainda não se manifestou sobre os motivos que o levaram a solicitar o acréscimo.

O militar foi exonerado em 26 de março, com a saída de Pazuello. Foi nomeado, em 22 de abril, assessor especial da Casa Civil. O contrato, no valor de R$ 1,614 bilhão, foi suspenso no último dia 29. A decisão foi tomada após virem à tona denúncias de que houve pressão por parte de integrantes do ministério para acelerar a importação dos imunizantes, mesmo com inconsistências no processo.

 

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Fux permite que coronel e reverendo fiquem em silêncio

 

O presidente do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, autorizou ontem que quatro convocados pela CPI da Covid fiquem em silêncio perante o colegiado em relação a fatos que possam incriminá-los. As decisões beneficiam o reverendo Amilton Gomes de Paula, fundador da Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários; o tenente-coronel Marcelo Blanco, ex-assessor do Ministério da Saúde; Túlio Belchior Mano da Silveira, representante da Precisa Medicamentos; e Cristiano Alberto Carvalho, representante da Davati Medical Supply.

Fux, porém, negou pedidos para que os convocados não comparecessem ou se retirassem das sessões, destacando que os quatro têm o dever de depor e de dizer a verdade. Ainda segundo Fux, a CPI tem autonomia para analisar se os depoentes "abusam" do direito de ficar em silêncio. / PEPITA ORTEGA

 

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Empresário tentou negociar 'vale-vacina' com setor privado

 

Lauriberto Pompeu

Vinicius Valfré

 

O empresário Francisco Emerson Maximiano, sócio da Precisa Comercialização de Medicamentos, investigado por suspeitas de fraude na intermediação da venda de vacinas contra a covid-19 ao Ministério da Saúde, tentou, em novembro de 2020, negociar um "vale-vacina" no mercado privado. Ao custo de R$ 1,9 mil por pessoa, o empresário oferecia um "seguro" que dava direito a duas doses de um imunizante. A oferta surgiu antes de a Anvisa dar aval a qualquer vacina e sem que as empresas envolvidas tivessem acesso a estoques. Os anúncios levaram o Procon de São Paulo a notificar as companhias por suspeitas de oferta enganosa.

Max, como é conhecido, seria ouvido ontem na CPI da Covid, mas o depoimento foi adiado para agosto. As relações do empresário estão no foco dos senadores da comissão.

A Precisa e a BSF Gestão em Saúde, ambas controladas por Max, eram parceiras da seguradora Generali na oferta do seguro das vacinas. Em propagandas veiculadas nas redes sociais no fim do ano passado, a Generali informava que, além das duas doses da vacina, o seguro dava direito à cobertura em caso de invalidez ou morte acidental e a um reembolso de medicamentos de uso agudo.

Os anúncios diziam que as doses da vacina seriam fornecidas "assim que aprovadas pela Anvisa". A legislação impede que empresas privadas tenham lucro com vacinas contra covid-19 e, hoje, os imunizantes são distribuídos apenas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), sem custo aos cidadãos. As propagandas da seguradora foram excluídas das redes sociais, e o portal criado exclusivamente para vender o produto foi encerrado.

A Generali foi notificada em 19 de novembro pelo Procon de São Paulo. No mesmo mês, os anúncios foram retirados do ar. Em 25 de fevereiro, três meses após a notificação do órgão de proteção ao consumidor, o Ministério da Saúde fechou contrato de R$ 1,6 bilhão para a compra de 20 milhões de doses da vacina indiana Covaxin, com intermediação da Precisa.

Em novembro passado, havia uma corrida internacional para a compra de imunizantes contra a doença, e nenhuma vacina havia sido aplicada no mundo, o que só aconteceu a partir de dezembro, um mês depois. A CPI apura se houve atraso intencional na compra de imunizantes pelo governo de Jair Bolsonaro para favorecer iniciativas como a da Precisa.

A tentativa de estabelecer o negócio no mercado privado alimenta as suspeitas da CPI de que as empresas de Max não deveriam ser consideradas pelo governo Bolsonaro para intermediar a compra de vacinas.

O governo suspendeu a aquisição da vacina indiana em 29 de junho, após o deputado Luís Miranda (DEM-DF) e o irmão dele, o servidor do Ministério da Saúde Luís Ricardo Miranda, denunciarem suposto esquema de corrupção no governo para a compra do imunizante.

A CPI da Covid suspeita de que a Precisa e a BSF façam parte de uma rede de 14 empresas, ligadas a Max e com movimentações suspeitas, que se articulam para terem influência em contratos com o governo.

 

Movimentações suspeitas. Relatório do Conselho de Controle de Atividade Financeira (Coaf) enviado à CPI da Covid apontou movimentações financeiras suspeitas da Precisa e da BSF, com transferências superiores aos rendimentos informados pelas empresas. Entre 1.º de setembro de 2020 e 22 de fevereiro de 2021, a BSF movimentou, entre saídas e entradas de dinheiro, R$ 68,1 milhões. A quantia é 12 vezes superior ao último faturamento informado pela empresa – R$ 5,4 milhões entre janeiro e junho de 2019.

Já a Precisa, somando saídas de R$ 22 milhões e entradas de R$ 21,7 milhões, movimentou R$ 43,7 milhões entre 17 de fevereiro e 14 de junho de 2021. Dos R$ 22 milhões que saíram das contas da Precisa, R$ 14 milhões foram para a BSF, que também é de Maximiano. Apesar de movimentar mais de R$ 40 milhões, o faturamento anual da Precisa, de acordo com o Coaf, é de R$ 17,3 milhões.

"Identificamos que os créditos mais expressivos ocorreram por meio de mesma titularidade, dificultando assim a identificação dos ordenantes, a origem do fato, valores esses repassados para a BSF Gestão em Saúde Ltda, empresa do grupo, somado o valor transacionado estar superior ao faturamento anual cadastrado", aponta o relatório do Coaf. Procuradas, a Generali, a Precisa e BSF não se manifestaram. O Procon de São Paulo foi questionado sobre a notificação de novembro, mas não comentou.