Título: Êxodo vai afetar dados demográficos
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Fonte: Jornal do Brasil, 06/09/2005, Internacional, p. A8

A movimentação da população das regiões afetadas pelo Katrina já é comparada à maior onda migratória de negros na história americana, que ocorreu entre as décadas de 40 e 70, do Sul para o Norte. Forçadas a sair de casa por um desastre natural, essas pessoas diferem dos migrantes do século XX pela falta de opção. Por outro lado, os desabrigados negros de agora também são pobres e não vão poder esperar até que a cidade seja reconstruída. Precisam de um novo lar e emprego o mais rápido possível, o que vai, também como no passado, depender do grau de racismo que encontrarem pelo caminho. Um site do grupo segregacionista Ku Klux Klan ontem pedia ajuda para os sobreviventes do Katrina. Mas só para os brancos.

- Essas pessoas vão ter de se estabelecer imediatamente e mandar os filhos para a escola. Isso, provavelmente, vai afetar os dados demográficos da região que escolherem - explica o único senador negro americano, Barack Obama.

O escritor Nicholas Lemann, autor de The Promised Land: The Great Black Migration and How it Changed America (A Terra Prometida: Como A Grande Migração Negra Mudou a América), teme que, como aconteceu em Chicago, por exemplo, o fenômeno acabe formando guetos nas grandes cidades.

Nos três estados mais atingidos pelo furacão, Louisiana, Mississippi e Alabama, a renda anual de 36 localidades arrasadas está US$ 10 mil abaixo da média nacional. Quase 30% dos moradores igualmente estão abaixo da linha de pobreza. Duas em cada 10 famílias não têm carro, o que foi, justamente, um dos fatores que dificultaram a saída das cidades antes que a situação ficasse fora de controle. O outro foi a falta de dinheiro. E cerca de 4,5% dos moradores recebem algum tipo de benefício social do governo - em todos os EUA, o índice é de 3,5%.

- Conte para todo mundo que não somos vagabundos. Nós tempos casas. Só que foram destruídas. Nós temos empregos e não temos culpa se não tínhamos carro para sair - lamentava Shatonia Thomas, de 27 anos, enquanto perambulava perto do centro de convenções de Nova Orleans com os filhos, de seis e nove anos. Na área de desastre, 12% dos lares são mantidos por mães solteiras, contra a média nacional de 7%.

Logo nos primeiros dias da tragédia no Sul do país, parlamentares e ativistas dos direitos humanos denunciaram o que identificaram como racismo em toda a falta de organização no atendimento às vítimas. As cenas da multidão abandonada no estádio Superdome e no Centro de Convenções reforçaram a idéia.

- Vai me dizer que nós conseguimos coordenar um esforço de emergência no outro lado do mundo e não conseguimos fazer isso aqui? Eu não estou dizendo que as pessoas não se preocuparam. Estou dizendo que não se preocuparam o suficiente. Não consigo deixar de pensar que isso tem alguma coisa a ver com raça - disse, num sermão inflamado, o reverendo I. V. Hilliard, de Houston, no Texas, para uma platéia inflamada. Hilliard lidera uma igreja de 20 mil fiéis, de maioria negra. - Mesmo alguns brancos conservadores estão furiosos com isso.

O debate ganhou as páginas dos jornais e está tomando força num país ainda atordoado e emocionado com o maior desastre natural dos últimos tempos. Ontem, por exemplo, a rede de TV NBC foi obrigada a soltar nota oficial para dizer que não apóia a opinião do rapper Kanye West, negro. Durante a transmissão de um show em benefício para as vítimas da tragédia, sábado, West saiu do roteiro e falou ao vivo: ''O presidente George Bush não liga para os negros'', ao lado de um constrangido Mike Myers, ator americano, branco. Antes que continuasse o discurso de improviso, saiu do ar e a direção do programa cortou para o comediante Chris Tucker.

O rapper havia declarado que os EUA sempre ajudam pobres e negros ''o mais lentamente possível''. ''Seria uma pena se os esforços dos artistas que participaram do evento dessa noite e a generosidade dos americanos que estão ajudando aqueles que estão passando necessidade fossem ofuscados pela opinião de uma pessoa'', dizia a nota da rede de televisão.

Os negros americanos acabaram ficando concentrados no Sul graças à história da escravidão no país, que foi abolida em 1865. Entre 1940 e 1970, foi grande a movimentação, que acabou formando as concentrações em cidades como Chicago, Nova York, Detroit e Washington.