Correio Braziliense, n. 21533, 01/03/2022. Mundo, p. 3

Putin pode ser réu em Haia



Embora a Ucrânia e a Rússia não integrem o Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia, a Procuradoria da Corte pretende deflagrar uma investigação sobre crimes de guerra ou contra a humanidade no país invadido por Moscou. “Já encarreguei minha equipe de explorar todas as oportunidades de preservação de evidências”, anunciou, ontem, o procurador Karim Khan. A iniciativa foi exaltada pelo embaixador da Ucrânia na ONU, Sergiy Kyslytsya, durante a sessão extraordinária de emergência da Assembleia Geral, em Nova York, que decide, até amanhã, se condena a ofensiva, após o fracasso do Conselho de Segurança.

Khan afirmou que poderia pedir para os juízes do TPI aprovarem o inquérito, mas que seria mais rápido se um Estado membro do tribunal remetesse o caso ao seu gabinete. “Isso nos permitiria prosseguir ativa e imediatamente com as investigações independentes e objetivas.”

A Lituânia está disposta a fazer isso, segundo o jornal norte-americano The Washington Post. Ontem, a primeira-ministra, Ingrida Simonyte, solicitou a abertura de uma investigação sobre possíveis crimes de guerra cometidos pela Rússia e por Belarus. “O que (Vladmir) Putin está fazendo é assassinato, e espero que ele vá para Haia.”

Antes mesmo do anúncio de Khan, diversas organizações começaram a juntar evidências de crimes de guerra para usá-las em julgamentos futuros nos tribunais internacionais. Segundo o jornal britânico The Guardian, um deles é Eliot Higgins, fundador da agência de jornalismo investigativo Bellingcat. “Nosso objetivo é disponibilizar os dados para qualquer processo de responsabilização que queira usá-los. Pretendemos obter, no mínimo, dados de geolocalização e, em seguida, trabalhar para adicionar outros, como tipo de violação documentadas, munições apresentadas em vídeos etc.”

Em 2020, a antecessora de Khan no TPI, Fatou Bensouda, declarou que havia provas suficientes do conflito no leste da Ucrânia e na Crimeia, iniciado em 2014, para iniciar uma investigação. Os juízes do TPI, contudo, não concordaram à época. Agora, o advogado britânico acredita que as coisas serão diferentes. “Em particular, estou convencido de que há uma base razoável para acreditar que tanto os supostos crimes de guerra quanto os crimes contra a humanidade foram cometidos na Ucrânia”, afirmou, em um comunicado. 

“Basta”

Em Nova York, mais de uma centena de oradores se inscreveram para falar na sessão excepcional dos 193 membros da ONU, a primeira do tipo a acontecer em 40 anos. A reunião começou com um minuto de silêncio em memória das vítimas do conflito que entra hoje no sexto dia. “Basta! Os combates devem parar”, declarou o secretário-geral da ONU, o português Antonio Guterres.

“Se a Ucrânia não sobreviver, não nos surpreendamos se a democracia falhar”, disse o embaixador ucraniano na ONU. 

Intitulado A agressão armada não provocada da Rússia contra a Ucrânia, o projeto de resolução promovido pelos europeus em coordenação com Kiev “condena, nos termos mais duros, a agressão da Rússia” contra a Ucrânia. “A guerra não é a resposta”, lembrou Guterres, antes de enfatizar que “precisamos de paz agora”.

O texto é similar ao apresentado por Estados Unidos e Albânia e rejeitado por um veto russo no Conselho de Segurança na sexta-feira. Exige a retirada imediata das tropas russas da Ucrânia e o fim dos combates. Seus autores esperam ultrapassar a centena de votos favoráveis na Assembleia, onde não há direito de veto.

No Conselho de Segurança, África e América Latina apoiaram a denúncia da invasão formulada por Estados Unidos e Europa. Na Assembleia Geral, espera-se que os apoiadores habituais de Moscou — Síria, Cuba, China, Índia e outros — fiquem ao lado da política russa, ou se abstenham de votar. “A Guerra Fria acabou há muito tempo. A mentalidade da Guerra Fria baseada no confronto de blocos deve ser abandonada. Não há nada a ganhar com o início de uma Nova Guerra Fria”, frisou o embaixador da China na ONU, Zhang Jun. Em breve discurso, mas contundente, ele disse que “deve-se respeitar a soberania e a integridade de todos os países”, bem como “todos os princípios da carta das Nações Unidas”. O resultado da sessão será um termômetro da evolução do mundo, segundo diplomatas.