Título: Um vexame nacional
Autor: Magno de Aguiar Maranhão*
Fonte: Jornal do Brasil, 06/09/2005, Outras Opiniões, p. A17

Das 352 milhões de crianças entre cinco e 17 anos que trabalham no planeta, 180 milhões são exploradas das piores maneiras: submetidas a trabalhos forçados, usadas para atividades criminosas e em redes de prostituição. Do total, 97% vivem em países em desenvolvimento, que têm se revelado inaptos para oferecer uma perspectiva de futuro menos sombria para cidadãos em plena fase de formação, mas totalmente desamparados por suas famílias, pela sociedade e pelo Estado que deveria socorrê-los quando tudo o mais falha. Os dados são do Fundo das Nações Unidas para a Infância, Unicef, que volta a atacar e promoveu, no fim do mês passado, na sede do Parlatino (Parlamento Latino-americano, em São Paulo), a Consulta Nacional sobre Violência contra a Criança e o Adolescente, em parceria com o governo federal. O objetivo é contribuir com um estudo global da ONU, recomendado pelo Comitê dos Direitos da Criança ao secretário-geral Kofi Annan, e elaborar a ''Plataforma brasileira de enfrentamento da violência contra crianças, adolescentes e jovens brasileiros - metas e ações''.

A mobilização ocorre justo quando a mídia volta a abordar o espinhoso tema da prostituição infantil, cujo ranking é liderado, na América Latina, pelo Brasil. Já na década passada estimava-se em 500 mil o número de meninas sujeitas à exploração sexual comercial, sem contar as que sofrem violências em suas comunidades ou nas próprias casas. As autoridades dizem ser difícil fornecer números precisos, já que este tipo de crime é muitas vezes encoberto - por vergonha, medo ou porque as menores, que não raro já sofreram uma iniciação sexual precoce ou violenta, se prostituem a fim de escapar da pobreza e demonstram resistência a qualquer ajuda. Prejudicadas em seu desenvolvimento físico, sujeitas à gravidez, abortos e doenças sexualmente transmissíveis, carregam também danos emocionais difíceis de reverter, como baixa auto-estima, visão distorcida do mundo e conseqüente desestímulo para o aprendizado de atividades que possibilitem sua inserção social.

Universidades têm realizado trabalhos importantes para a formulação de políticas que contemplem essa parcela fragilizada da população. O Laboratório de Estudos da Criança da USP fez um levantamento sobre violência sexual no período 1996/2002 e conseguiu registrar mais de seis mil ocorrências, 73% contra meninas. Já um grupo de pesquisa da Universidade de Brasília (UnB) elaborou, entre 1996 e 2004, o Estudo Analítico do Enfrentamento da Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes no Brasil, detectando a gravidade do problema, sobretudo, em 104 municípios de fronteira. Eles constam de uma lista de 930 municípios onde tal tipo de crime já foi comprovado:

Na esfera federal, foi criado em 2001 o Programa Sentinela, vinculado ao Ministério do Desenvolvimento Social, que age em parceria com municípios, que, por sua vez, criam centros de referências, conveniados com outras entidades, nos quais uma equipe de educadores, psicólogos e assistentes sociais atendem jovens vítimas de abuso sexual. A finalidade é proporcionar orientação integral, tanto às crianças quanto aos seus responsáveis, uma vez que, geralmente, uma família desestruturada está na origem desse drama. Atualmente, o Sentinela atua em mais de 300 municípios e atende 29 mil menores. Número pequeno, comparado à verdadeira demanda.

Não creio que exista uma, ou A, solução para o problema. Obviamente, os poderes públicos precisam ser mais eficazes no que diz respeito à punição de aliciadores que tiram proveito da vulnerabilidade de crianças. Mas, a meu ver, é justamente esta vulnerabilidade que, em primeiro lugar, se deve combater.

Isso só será possível por meio da sensibilização da sociedade e apoio mútuo entre as esferas de governo, ONGs e instituições de ensino, para que se articule um conjunto de ações drásticas contra esse vexame nacional. Enfim, lembro que acabamos de comemorar os 15 anos da Lei 8.069/90, ou Estatuto da Criança e do Adolescente, elogiado e copiado por 14 nações. Avançamos na legislação. A realidade mostra como falta para avançarmos no seu cumprimento.

*Conselheiro do Conselho Estadual de Educação do Rio