O Globo, n. 32757, 14/04/2023. Mundo, p. 16

Recados aos EUA

Marcelo Ninio


O primeiro dia da viagem do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à China foi marcado pelo tom de desafio à hegemonia dos Estados Unidos, em um alinhamento à defesa que o governo chinês tem feito da multipolaridade. Em Xangai, o líder brasileiro fez um discurso elo quente contra ou sodo dólar como moeda predominante na economia global durante aposse da ex-presidente Dilma Rousseff no comando do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), o Banco do Brics, grupo formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África dos Sul.

Em seguida, Lula visitou um centro de pesquisa da gigante de tecnologia Huawei, considerada pelos americanos um risco à sua segurança nacional e um braço do governo chinês — é, contudo, uma empresa privada que se vê no centro das disputas sino-americanas. Nessa cadência, a viagem do petista ao maior parceiro comercial do Brasil começou como música aos ouvidos de Pequim.

Duas visitas, dois tons

As declarações de Lula no início da viagem se limitaram a um discurso no NBD em que, como previsto, defendeu princípios caros aos chineses. Sem falar com a imprensa, pôde evitar temas com potencial para gerar ruídos com o país anfitrião, como democracia, direitos humanos, a tensão geopolítica e o assunto mais sensível para a China, o status de Taiwan, ilha autogovernada que Pequim vê como província rebelde.

O posicionamento de Lula difere do tom adotado em Washington: ao visitar Joe Biden, em fevereiro, o presidente brasileiro usou sua breve passagem pela capital americana para defender a democracia —ainda em sinalização às invasões golpistas dos prédios dos três Poderes, em Brasília, por bolsonaristas radicais em 8 de janeiro, com críticas fortes ao seu antecessor, Jair Bolsonaro. A agenda nos EUA quase não teve componentes econômicos e terminou sem acordos relevantes, enquanto o petista cobrava dos EUA mais investimentos no Brasil e na região.

Em Xangai, Lula voltou com força aos questionamentos que deram origem ao Brics, como a necessidade do reforma do sistema de governança global para dar mais espaço aos países emergentes. Ao lado do vice-chanceler chinês, Xi Feng, o discurso mostrou-se alinhado a posições parecidas de Pequim, o que deve gerar questionamentos dos americanos sobre o argumento brasileiro de equidistância na rivalidade.

Metade do discurso do presidente brasileiro no NBD foi de improviso, justamente quando ele aproveitou para criticar a hegemonia do dólar. O uso de moedas locais para escapar da divisa americana tem sido um dos pontos que mais geram expectativa na relação dos países do Brics, rendendo grande destaque na mídia chinesa.

Defesa de moeda do  BRICS

Em janeiro, os Bancos Centrais do Brasil e da China assinaram um acordo para permitir comércio e investimentos em suas moedas. Lula foi mais longe: defendeu a criação de uma moeda do Brics.

—Toda noite me pergunto por que todos os países precisam fazer seu comércio lastreado no dólar. Por que não podemos fazer comércio lastreado na nossa moeda? Por que não podemos ter o compromisso de inovar? Quem é que decidiu que era o dólar a moeda depois que o ouro desapareceu como paridade? Por que não foi o yen? Por que não foi o real, o peso? Porque as nossas moedas eram fracas, não tinham valor em outros países —disse ele.

O petista em seguida fez mais uma indireta. Disse que é necessário cautela — “se tem uma coisa que chinês sabe é ter paciência”, brincou o presidente —mas que a hesitação de deixar o dólar de lado tem outro pano de fundo:

— Por que um banco como o dos Brics não pode ter uma moeda para financiar relações comerciais entre Brasil e China, entre Brasil e outros países dos Brics? É difícil porque tem gente mal acostumada a depender de uma só moeda. E eu acho que o século XXI pode mexer com a nossa cabeça.

O governo Lula tem defendido uma posição de independência no cenário global, em meio à disputa cada vez mais explícita entre China e EUA em todas as esferas — geopolítica, econômica e tecnológica. Em sintonia com a tradição diplomática brasileira, o Itamaraty descarta um alinhamento com um dos lados. Mas algumas sinalizações deram a impressão em países do Ocidente de uma inclinação para Pequim, a começar pela comitiva e pela agenda bem mais robustas na visita à China do que a feita em fevereiro aos EUA. O primeiro discurso da viagem, ontem, e a visita à Huawei, devem reforçar essa impressão.

— O Brasil voltou — disse Lula no NBD.

— Voltamos com vontade de fazer a diferença, voltamos com vontade ajudar o mundo a ter um olhar diferente.

Lula: FMI ‘asfixia’ países

No banco multilateral, Lula fez críticas ao Fundo Monetário Internacional, que, segundo ele, “asfixia” os países em desenvolvimento com suas condições. De lá, foi ao showroom da gigante tecnológica, onde foi recebido ao som de “Garota de Ipanema” e usou óculos de realidade virtual. A Presidência chegou a divulgar as fotos de Lula com os óculos no perfil dele no Twitter, mas depois apagou a postagem.

A Huawei está no Brasil há mais de duas décadas, mas sua presença tornou-se um tópico sensível nos últimos anos frente ao acirramento das tensões sino-americanas, que inclui também a frente tecnológica. Em 2021, assim que os EUA incluíram a companhia em uma lista de empresas de tecnologia consideradas de “risco inaceitável” à segurança nacional, a gigante chinesa venceu um leilão para fornecer equipamentos para implantação da tecnologia 5G em todo o Brasil.

Em seu último compromisso em Xangai, Lula enalteceu as relações do Brasil com a China e voltou a alfinetar os EUA. Foi na reunião com o chefe do Partido Comunista da China (PCC) na cidade que é o centro financeiro do país, Chen Jining. Lula ressaltou que vê como uma das marcas de sua relação com o país asiático a necessidade de defender o papel da China na economia global.

— A nossa relação com o governo chinês não é uma relação qualquer. Quando nós reconhecemos a China como economia de mercado, estávamos dizendo ao mundo que não queríamos que a China vivesse na clandestinidade no mundo do comércio. Queríamos que a China fosse respeitada pelo que representava para a economia mundial naquele momento —disse Lula ao líder do PC em Xangai.

‘Repetindo a China’

Para Michael Shifter, presidente do Diálogo Interamericano, Washington não deve estar feliz “com todos os movimentos” do presidente na China, mas tampouco deve estar surpresa.

— Os EUA esperavam que o Brasil buscasse aprofundar os laços com Pequim. Washington não pode competir com as oportunidades que a China oferece. Mas deve responder de forma construtiva e buscar uma cooperação mais significativa, além da defesa compartilhada da democracia. Os valores são importantes, mas os recursos também.

Já o ex-embaixador americano no Brasil Thomas Shannon acha que o governo Lula “está repetindo a narrativa da China, sem necessariamente obter algo importante para os interesses do Brasil”. Ele, no entanto, não crê que a visita de Lula a Pequim cause ruído nas relações bilaterais.

— Os presidentes Lula e Biden têm um bom relacionamento, e isso tem enorme valor. Os EUA reconhecem que o Brasil é um parceiro importante—diz Shannon, que foi subsecretário do Hemisfério Ocidental do Departamento de Estado.

— O governo Biden vai focar nisso, e não na retórica, especialmente na retórica de uma visita de Estado. Os EUA e o Brasil têm uma relação profunda, forte, que é maior do que seus governos.

Hoje, o presidente terá uma agenda política cheia em Pequim, onde se reunirá com várias autoridades do PCC. O ponto alto será o encontro com o presidente do país, Xi Jinping. Cerca de 20 acordos bilaterais devem ser assinados.