O Globo, n. 32757, 14/04/2023. Política, p. 4

Abuso de poder

Reynaldo Turollo Jr.
Mariana Muniz


Em parecer no qual defende que Jair Bolsonaro fique inelegível por oito anos, a Procuradoria-Geral Eleitoral afirma que o ex-presidente mobilizou a população a se insurgir contra o sistema eleitoral e usou o Estado para benefício pessoal na eleição. A manifestação pela condenação, entregue na quarta-feira ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), é o último passo da acusação antes do julgamento do processo sobre a reunião com embaixadores no Palácio da Alvorada, em julho de 2022. A análise em plenário deve ocorrer até maio.

No documento, ao qual O GLOBO teve acesso, o Ministério Público afirma ver no episódio inúmeras condutas que ferem a legislação eleitoral, como abuso de autoridade e de poder político, desvio de finalidade e uso indevido dos meios de comunicação.

A Procuradoria-Geral Eleitoral pediu a condenação do ex-presidente por reconhecer que seu discurso a embaixadores estrangeiros, três meses antes da eleição presidencial, efetivamente atacou as instituições eleitorais, de modo a abalar a confiança da população. Caso seja punido, Bolsonaro só poderá disputar eleições a partir de 2032.

A ação foi apresentada pelo PDT no ano passado para apurar os ataques ao sistema eleitoral feito pelo então presidente na reunião. Posteriormente, foram incluídos nos autos outras críticas de Bolsonaro às urnas eletrônicas, além da minuta do golpe — rascunho de um decreto presidencial apreendido pela Polícia Federal na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres. O documento previa uma intervenção no TSE com o objetivo de rever o resultado da eleição de 2022, da qual Bolsonaro saiu derrotado.

“Inédita mobilizacão”

No parecer, o Ministério Público pede à Corte Eleitoral a absolvição do então candidato a vice, Walter Braga Netto, por não ter havido a participação dele nos fatos investigados.

O ex-presidente é alvo de um instrumento chamado de Ação de Investigação Judicial Eleitoral (Aije). Previstas na Lei de Inelegibilidade, de 1990, essas ações podem ser apresentadas ao TSE por candidatos, partidos ou pelo Ministério Público. O objetivo é investigar “uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade”, além de utilização indevida de meios de comunicação.

O parecer é assinado pelo vice-procurador-geral eleitoral, Paulo Gonet. Ele argumenta que, após o evento com embaixadores, “percebeu-se uma inédita mobilização de parcelas da população que rejeitavam aberta e publicamente o resultado das eleições”. O texto acrescenta que é “fato notório que surgiram acampamentos e manifestações de rua animados por pessoas convictas de que as eleições haviam sido fraudadas”.

Entre os “fatos relevantes” apontados pelo MP no parecer estão desinformações citadas por Bolsonaro aos embaixadores no encontro, como a live que ele promoveu ao lado de um programador em outubro de 2018, na qual o suposto especialista diz que é possível fraudar a eleição alterando o código-fonte das urnas. A acusação jamais foi comprovada. O ex-presidente também disse aos embaixadores que o TSE sofreu uma invasão de hackers em 2018, mas omitiu que o tribunal afastou qualquer risco para a votação. O hacker teve acesso apenas a dados administrativos, não às urnas.

A manifestação também aponta que Bolsonaro se aproveitou da condição de presidente para tentar “desequilibrar a disputa em seu favor”. A live na qual fez falsas acusações foi transmitida pela TV Brasil.

“A busca do benefício pessoal também foi tornada clara. O uso de recursos estatais para a atividade está estampado nos autos. Todo o evento foi montado para que o pronunciamento se revelasse como manifestação do presidente da República, chefe de Estado”.

Ao defender a condenação, Paulo Gonet lembrou o caso do ex-deputado bolsonarista Fernando Francischini, que foi cassado pelo TSE em outubro de 2021 por ter divulgado fake news sobre fraudes nas urnas eletrônicas quando concorreu em 2018.

Gonet ressaltou, no entanto, que seu parecer não analisou os fatos do ponto de vista criminal, mas estritamente eleitoral, e disse que seu posicionamento não vincula as ações de Bolsonaro naquela ocasião aos atos golpistas de 8 de janeiro, em que apoiadores do expresidente depredaram os prédios do Congresso, do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Palácio do Planalto.

Defesa não comenta

Na manifestação enviada ao TSE, o MP rebateu o argumento da defesa de Bolsonaro de que, ao expor sua desconfiança sobre o processo eleitoral, o então presidente estava apenas buscando contribuir para o aperfeiçoamento do sistema. Para o procurador, esse debate já havia sido encerrado pelo Congresso, que em 2021 rejeitou uma proposta que instituía o voto impresso.

“As críticas do Presidente da República só poderiam ser vistas como alerta para os brasileiros e para o mundo de que o resultado das eleições não podiam ser recebidos como confiáveis e legítimos — tudo isso, além do mais, num contexto em que pesquisas eleitorais situavam o adversário do investigado como melhor posicionado na preferência dos cidadãos”, observou o procurador, em referência à dianteira de Lula.

Procurada, a defesa de Bolsonaro afirmou que não poderia se posicionar sobre o parecer enquanto ele continua em sigilo de Justiça. A equipe do advogado Tarcísio Vieira de Carvalho Neto protocolou ontem uma petição ao corregedor-geral do TSE, Benedito Gonçalves, para que fosse retirado o segredo do processo. O pedido de sigilo parcial fora feito pela própria defesa do ex-presidente.