Título: Punir ladrões de sonhos
Autor: Heloneida Studart
Fonte: Jornal do Brasil, 08/09/2005, Outras Opiniões, p. A11

Quando veio a anistia, depois da cruel noite da ditadura, fui convidada para um churrasco em homenagem ao aniversário de Giocondo Dias, dirigentes do Partido Comunista. Era um idoso, como dizem hoje, suave e de olhos claros, capaz de inspirar afetos em todas as vertentes partidárias, tantos eram os não-comunistas presentes ao churrasco. Via-se logo que aquele derrotado era vitorioso no território que mais importa ao ser humano : o amor. Toda a família o paparicava, sem contar os afagos, sorrisos, abraços dos amigos comovidos.

Na festa do cabo Dias, havia um homem meio inibido que ninguém esperava que tivesse sido convidado. Era um membro da direção do PC que, posto sob tortura durante semanas, entregara aos militares alguns nomes e alguns endereços. Macerado de dores, aparecera na televisão renegando seus princípios.

Giocondo Dias orientou que também lhe dessem o microfone para os parabéns e saudações de praxe. E ele, depois de louvar o heroísmo do cabo Dias, disse uma frase que me marcou para sempre : ''Ideologia não dá caráter a ninguém.'' A frase tem me voltado à mente diante da vilania de alguns dirigentes do PT, meu partido. Esses personagens sem caráter não levaram em conta um patrimônio ético construído em 25 anos, a biografia de dezenas de deputados honestos, de outros tantos prefeitos honrados, de centenas de milhares de militantes íntegros, dedicados e sérios.

Parece um filme de terror. O Partido dos Trabalhadores, fundado por heróis brasileiros como Mário Pedrosa, Sérgio Buarque de Holanda, Lelia Abramo, e até por heróis planetários como Apolônio de Carvalho, de repente apresenta uma cara deformada e suja pela corrupção. É esse o meu partido ? É esse o partido em que Celso Furtado votou até a morte, em que Hélio Pelegrino depositou seus melhores sonhos de um país mais justo ? Não levaram em conta o que significou para nós e para o mundo eleger um presidente operário, num país de conservadores, de esnobes e de maldizentes.

Os dirigentes petistas sem caráter que arrastaram o PT para a geléia geral da corrupção, inclusive para a mesma vala em que florescem os autores da privataria, aqueles que venderam o Brasil na bacia das almas (encheram os bolsos e não explicaram nada para ninguém), merecem punição severíssima.

Esses traidores que se renderam à cobiça e à ganância, no fundo, se sentiam protegidos pelo manto da arrogância, do autoritarismo. Navegando nas águas turvas do pragmatismo stalinista, roubaram os sonhos dos militantes do PT, pessoas generosas e idealistas que, de forma heróica, venderam estrelinhas, andaram pelos quatro cantos deste país continental catando filiados e sacudiram as bandeiras vermelhas tão rejeitadas pelos conservadores desde a Revolução Francesa.

Durante anos, citei para esses queridos companheiros do PT, a frase de Bertolt Brecht : '' Não somos melhores do que ninguém, melhor é a nossa causa.'' E, para salvar o partido, nosso sonho e nossas lutas, as investigações devem ser cabais. Não se pode ter complacência com os que traíram nossa causa e lançaram nossa estrela no charco. Têm que ser expulsos.

Contudo, é inadmissível que notórios representantes das oligarquias políticas mais corruptas do país se transformem da noite para o dia em baluartes da lisura no trato da coisa pública. Também devemos rejeitar com energia a tentativa de criminalização da atividade política. Precisamos ter claro : fora da política, só a violência e o caos. Os que procuram desconstituir a política como espaço de afirmação da cidadania e instrumento de transformação social estão, na realidade, vinculados a projetos políticos conservadores que têm o mercado como único paradigma.

É hora de pegar a agulha de ouro da esperança e recosturar as nossas vestes rasgadas. Vamos mostrar ao povo brasileiro que não errou em confiar na gente. Vamos resgatar nossa estrela no meio do ódio desencadeado pela direita mais hidrófoba, para que ela volte a brilhar, limpa e bela, como sempre foi.