O Globo, n. 32759, 16/04/2023. Saúde, p. 25

"A discussão não pode se limitar as drogas ilegais"

Patrick Radden Keefe - Jornalista


Um dos livros de não ficção mais premiados no ano passado, “Império da dor” (Intrínseca) é um relato devastador de Patrick Radden Keefe, da revista “New Yorker”, sobre como a sede de lucro de uma das famílias mais notórias da indústria farmacêutica detonou a crise de opioides nos Estados Unidos.

Estimativas oficiais mostram que mais de meio milhão de americanos, entre 1999 e 2021, tiveram overdose fatal causada por opioides. E nenhum medicamento simbolizou a matança como o OxyContin. O analgésico potente e incrivelmente viciante que os Sackler, donos da Purdue, levaram às farmácias a partir de 1996, com uma estratégia de marketing similar à que usaram quatro décadas antes com o Valium, tornou-se rapidamente uma street drug e lhes garantiu receita de US$ 35 bilhões.

Em entrevista por e-mail, Keefe não titubeia ao comparar a oferta agressiva do medicamento a métodos do narcotráfico. Veterano na cobertura dos cartéis mexicanos, ele foi levado a escrever “Império da dor” justamente pelo aumento súbito da entrada de heroína, em 2010, nos EUA, após Washington forçar a reformulação do OxyContin. Após uma série de processos, a Purdue decretou falência, mas um acordo, no governo Trump, garantiu aos Sackler anistia e a possibilidade de manter boa parte dos bilhões que haviam lucrado desde a comercialização do medicamento. Em 2020, a Forbes a apontava como a trigésima família mais rica dos EUA.

Com mais de 200 entrevistas e acesso a dezenas de documentos e e-mails internos, Keefe também aponta o dedo para o que classifica como “lavagem de reputação” da família, nas somas presenteadas ao Louvre, à Tate Modern, ao Metropolitan, ao Guggenheim, ao Museu Britânico, entre outros, em troca do batismo de alas e galerias. O livro é ainda uma das inspirações de “Painkiller”, série que a Netflix lança no segundo semestre, com Matthew Broderick no papel de Richard Sackler, presidente da Purdue entre 1990 e 2018.

Entre 2012 e 2018, a venda legal de opioides nas farmácias brasileiras aumentou 465%. Em fevereiro, a polícia fez uma apreensão de fentanil, opioide sintético restrito de uso hospitalar, usado ilegalmente para acentuar o efeito da cocaína e do ecstasy. O que os EUA podem nos ensinar sobre o monitoramento do uso de opioides?

Que regulamentar a economia ilícita é muito difícil, até impossível na prática. Mas o comércio de drogas lícitas não só pode como deve ser regulado pelas agências, pelo governo, e com rigor.

Quando o senhor decidiu investigar os Sackler?

Fiz muitas reportagens sobre os cartéis de drogas mexicanos. Em 2010, percebi que o cartel de Sinaloa, e de forma abrupta, passara a enviar mais e mais heroína aos EUA. Aquilo me encafifou. A resposta estava na crise dos opioides: toda uma geração de americanos havia se viciado em heroína após usar sem restrição analgésicos fortíssimos, com prescrição médica, notadamente o OxyContin. Descobri que havia uma farmacêutica responsável. E o nome Sackler me era muito familiar.

Por quê?

Em criança, frequentava o Museu Sackler, em Harvard. Quando me mudei para Nova York, visitava a ala Sackler do Metropolitan. Depois vivi na Inglaterra, onde Sackler aparecia em quase todos os museus da cidade. Fiquei petrificado ao pensar como um nome associado à alta cultura e à filantropia tinha uma faceta sinistra, a das drogas, do vício e da morte de tanta gente. Tinha que mergulhar nessa história.

O marketing agressivo foi crucial para o sucesso do OxyContin, inclusive com um programa de cupons com amostras gratuitas de até 30 dias aos pacientes. Esta não é uma estratégia típica do tráfico de drogas?

Não há exagero no paralelo. Preferimos acreditar que o submundo e a economia regular não se conectam, mas a interseção, neste caso, foi clara. As semelhanças das estratégias de mercado dos grandes conglomerados farmacêuticos e o narcotráfico, aliás, são impressionantes.

Por que as agências sanitárias americanas não foram mais rigorosas com um fármaco que causava tamanha dependência?

A FDA (agência equivalente à Anvisa nos EUA) deveria sim ter sido muito mais vigilante. Mas, se traficantes de drogas corrompem oficiais com subornos, as big pharma foram mais sutis. No caso da Purdue, conto que um dos principais responsáveis pela regulação do remédio na FDA mais tarde foi trabalhar na empresa. E em um posto muito bem remunerado.

O senhor também detalha que as farmácias passaram a oferecer doses mais generosas de OxyCodin, até oito vezes maiores do que as que costumavam ser receitadas. E que em 1999 uma investigação interna da Purdue já alertava para o uso da medicação como street drug. A família sabia que pessoas estavam morrendo de overdose pelo uso do medicamento?

Sim, sem sombra de dúvida. Eles passaram a receber informes regulares de casos de overdose e do uso de Oxy como street drug logo após o remédio começar a ser vendido nas farmácias.

E, no entanto, o governo americano só obrigou a droga a ser reformulada mais de uma década depois. Tempo suficiente para os pacientes migrarem para o fentanil e a heroína. Esta conexão é clara?

Sim. O mercado estava estabelecido. Não é coincidência que a reformulação ocorreu em 2010 e o consumo de heroína nos EUA imediatamente disparou naquele ano. Cito estudo que descobri da própria Purdue: imediatamente após serem obrigados a modificar a dosagem das pílulas de 80mg, as vendas caíram 25%. Qual o motivo? Pelo menos um quarto dos milhares de americanos que usavam Oxy em sua dosagem mais alta (e, claro, mais lucrativa) estavam viciados na medicação.

Como “Império da dor” se insere no debate sobre a descriminalização das drogas?

Ao chamar a atenção para o fato de que essa discussão não pode se limitar às drogas ilegais, como se só elas oferecessem risco para os cidadãos. Detalho como a cadeia de suprimentos de medicamentos pode ser, sem regulamentação, tanto ou mais danosa às pessoas.

O que aconteceu com a fortuna dos Sacklers?

A Purdue pediu falência — mas a família não. Eles se comprometeram a pagar US$ 6 bilhões para ajudar na conscientização da crise dos opioides. Mas em 19 anos. Um acordo que não só os permitiu manter parte de sua fortuna como os asseguraram anistia, não podem mais ser processados. Eles nunca se desculparam ou reconheceram erros publicamente. Nem irão. O único consolo é o de que o sobrenome Sackler está sendo apagado das instituições mundo afora que os celebravam. O que antes se traduzia por cultura e filantropia agora se lê como vergonha, ganância e morte. A reportagem é também sobre a lavagem de reputação a que se prestaram instituições da elite cultural global. E de como a filantropia pode ser usada para acobertar os crimes dos mais ricos.